Jornal Estado de Minas

PENSAR

Maria Esther Maciel analisa subjetividade dos animais na literatura

 

Adriano Cirino *

Especial para o EM 

 

Quando entrevistei Maria Esther Maciel para uma reportagem sobre a posse do líder indígena Ailton Krenak na Academia Mineira de Letras (ela também é acadêmica, eleita em 2021) em março passado, eu lhe perguntei, por curiosidade:

 

– Você tem muitos bichos? 

 

Eu já sabia que Maria Esther é especialista no estudo da “zooliteratura” (“o conjunto das práticas literárias ou obras que priorizam o enfoque de animais”, em sua própria definição do conceito) e da poética animal no Brasil e, com isso, imaginava sua casa quase como um zoológico.





 

– Só os que aparecem no jardim, todos os dias – ela respondeu, poeticamente. Mas, como se não fosse suficiente, acrescentou: – Minha querida amiga canina, Lalinha, partiu aos 15 anos, em 2016.

 

É para Lalinha que Maria Esther dedica um dos capítulos (intitulado “Quando morre um cão”) de seu novo livro, “Animalidades: zooliteratura e os limites do humano”, publicado pela Instante, editora fundada em 2017, com 29 títulos no catálogo até este lançamento. A capa e o design gráfico (uma “composição e sobreposição de figuras de animais e ossos humanos” e “gravuras vintage”, conforme detalham em nota os artistas e editores) recordam um bestiário ou enciclopédia.

 
Leia: Maria Esther Maciel: 'Os bichos me ensinaram muito'


O livro dá continuidade ao estudo pioneiro sobre animais na literatura empreendido pela autora com “Literatura e animalidade” (2016), “Pensar/escrever o animal” (2011) e “O animal escrito” (2008). É, essencialmente, um ensaio acerca da sua subjetividade: eles pensam? Como pensam? Sobre o que pensam? O que pensam de nós? (Pode até parecer que estamos falando de extraterrestres.)

 

“Adotar o ponto de vista de uma alteridade radicalmente outra é enfrentar o não sabido e demanda um salto, ainda que imaginário, para o outro lado da fronteira”, Maria Esther escreve. Este “salto, ainda que imaginário”, é o da poesia ou ficção: “através da lente da invenção e das potencialidades sensoriais da linguagem, uma compreensão dos animais e das relações interespécies”, da “condição animal do humano, e vice-versa.” 

 

Já no prólogo, a autora recorda Charles Darwin. Sem ele, não haveria zooliteratura tal como a conhecemos hoje, mas apenas bestiários e fábulas, com seus bichos alegóricos e antropomórficos, a serviço dos valores do homem. O cientista foi “fundamental para que a condição de sujeitos fosse atribuída aos animais, por nesses reconhecer faculdades até então – e mesmo ainda hoje – consideradas exclusivas dos humanos”; entre elas, a emoção, a memória e até o sonho.





 

O cão inaugura o “animalário” do livro e destaca-se entre todos os bichos: é o protagonista dos capítulos 2, 3 e 4, da primeira parte (são duas partes, além do prólogo e do epílogo – este, uma entrevista concedida por Maria Esther). Com razão. O cachorro foi, afinal, o “primeiro animal domesticado” da História, com fins de guarda e caça, sendo “impensável fora do contexto das culturas humanas”.

 

Em três capítulos sucessivos – vê-se que este é um leitmotiv –, a autora vale-se de algum exemplo filosófico ou literário em que um pet lança olhar enigmático sobre seu dono. Ressalta-se, nesses casos, a incompreensão da linguagem – bem como as tentativas de tradução e comunicação – interespécies. No primeiro deles, Jacques Derrida, pelado no banho, é observado pelo gato e se sente envergonhado. No segundo, Rubião, em “Quincas Borba”, de Machado de Assis, é observado junto à porta pelo cão Quincas Borba, herdado do falecido homônimo, e se pergunta se não é este no corpo daquele. 

 

“Emerge, nessas cenas, a intrigante dúvida advinda da ignorância humana diante do que se passa no interior de um bicho: O que esse cão sabe sobre mim?”, questiona Maria Esther. No terceiro exemplo, Tereza, em “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, é observada por Karenin, logo antes da cadela sofrer eutanásia: “‘Aquele olhar era uma pergunta ávida’”. 





 

Por falar em olhar, há crítica de cinema em “Animalidades”. Não é para menos: Maria Esther fez pós-doutorado em Literatura e Cinema pela Universidade de Londres. No capítulo 4 (dedicado a Lalinha), a autora compara, indiretamente, duas sequências de mortes de cães. Ela não poupa a adaptação de “A insustentável leveza do ser” (Philip Kauffman, 1988): “A presença canina é pontual, e até mesmo a cena do sacrifício da cadela não deixa de ser sucinta, o que, de certa forma, minimiza a questão animal na película”. Por outro lado, cobre de louros “Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963): “O ‘realismo’ advém desses recursos criativos, em nítida consonância com os recursos visuais inerentes à escrita do autor alagoano. Tanto que houve quem achasse, na época, que a cachorra que interpretara Baleia tivesse sido realmente assassinada”. Isso mesmo, interpretara (a Palma Canina premia os pets desde 2001, no Festival de Cannes).

 

Outros bichos e escritores brasileiros que compõem a fauna do livro incluem (sobretudo a partir da parte 2) peixes, búfalo e baratas, em Clarice Lispector; aves e porco, em Hilda Hilst; boi, em Carlos Drummond de Andrade. “Ao torná-los personagens, ela explora tanto a complexidade que os define como seres quanto os paradoxos que definem nossas relações com eles”, reflete Maria Esther.

 

A autora dedica o último capítulo à literatura contemporânea do século 21. Segundo ela, muitos dos nossos “animalistas” de hoje provêm de “povos indígenas e comunidades ribeirinhas, ameaçadas ou exterminadas pela violência de garimpeiros, madeireiros, fazendeiros do agronegócio, grandes corporações capitalistas e instituições governamentais.” “Não são poucos os que se voltam, de maneira prismática e inventiva, para essas questões”, observa. 





 

Quando Maria Esther ganhar um Jabuti, por “Animalidades” ou algum outro livro, poderá colocá-lo numa prateleira de prêmios ou então no jardim, na companhia dos outros bichos que por ali “aparecem, todos os dias”. 

 

Adriano Cirino é jornalista graduado pela UFMG, colaborador do jornal Rascunho e da revista piauí

 

 

TRECHO DO LIVRO

 

“Na vasta poesia de Drummond, os bois e as vacas também aparecem na condição de ‘eles’ e ‘elas’, convertidos em figuras poéticas recorrentes. Por ter vivido a infância no interior de Minas, onde seu pai foi fazendeiro, o poeta nunca deixou de evocar as paisagens rurais dos anos em que esteve em contato mais direto com animais, trabalhadores do campo, plantações e elementos naturais do seu entorno. Daí que, em seus poemas, tenha enfocado as reminiscências dessa vivência, flagrando as belezas, os reveses e as contradições das comunidades rurais do seu tempo de criança. Comunidades essas, vale lembrar, compostas de relações interespecíficas, nas quais homens, animais e plantas se misturavam de forma intrínseca.

 

Nessas comunidades rurais híbridas – hoje rarefeitas ou quase extintas pela ação devastadora da industrialização das fazendas e da proliferação das granjas e dos cativeiros de reprodução -, humanos e não humanos se inseriam num espaço feito não apenas de trocas de experiências, aprendizagens e afetos, como também de conflitos, embates, violência e exploração. Trata-se de uma sociedade em que a interação das espécies, atravessada por elementos bastante contraditórios, constitui um espaço compartilhado no qual a animalidade, longe de ser vista como uma ameaça aos humanos, torna-se uma condição comum entre homens e outros viventes animais.





 

Carlos Drummond de Andrade tratou dessas contradições em muitos poemas ao longo de sua trajetória literária, em especial nos livros ‘Boitempo’, de 1968, e ‘Menino antigo’ (Boitempo II), de 1973 – de explícito viés memorialístico.

 

A própria inserção da palavra ‘boi’ dentro do neologismo ‘boitempo’ usado como título dessas obras já aponta para esse universo vivenciado pelo menino Drummond no mundo rural e para a ideia de passado como matéria de ruminação. O boi torna-se, então não apenas o animal de referência para a rememoração da roça como um espaço perdido no tempo, virando um ‘personagem’ lírico, mas também uma palavra capaz de deflagrar cenas e cenários da vida vivida pelo poeta em tempos remotos, algo que já havia se presentificado no poema ‘O boi’, do livro ‘José’, de 1942, em que o boi parece associado à solidão no campo, em contraponto à solidão do homem na cidade.”

 

 

(Trecho do capítulo “A zoopoética de Carlos Drummond de Andrade”, de “Animalidades”, de Maria Esther Maciel)

 

 

“Animalidades: zooliteratura 

e os limites do humano”

De Maria Esther Maciel.





Editora Instante.

176 páginas.

R$ 69,90.

Lançamentos neste sábado (17/06) das 11h às 14h na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274) em Belo Horizonte e no dia 24/06, às 16h, na Livraria Janela (Rua Maria Angélica, 171), no Rio de Janeiro.

 

 

Sobre a autora

 

Maria Esther Maciel nasceu em 1963 em Patos de Minas (MG). Ensaísta e ficcionista, é professora de Literatura da UFMG e autora de “O livro dos nomes” (2008, menção especial no Prêmio Casa de las Américas 2009), “Literatura e animalidade” (2016), “Longe, aqui.” (2020) e “Pequena enciclopédia de seres comuns” (2021), entre outros títulos. Foi finalista dos prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura, Portugal Telecom e Oceanos. Atualmente é professora colaboradora da Pós-Graduação em História e Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas. Integrante da Academia Mineira de Letras, Maria Esther é também diretora editorial da Revista Olympio.