Feroz, Jango, Lampião, Susi e, até 2016, Lalinha. O convívio com cães, na infância em Patos de Minas e na vida adulta em Belo Horizonte, marca a vida da escritora Maria Esther Maciel. E, ainda que indiretamente, impulsiona a nova fase da pesquisa da autora mineira sobre zooliteratura. “Passei a me dedicar aos cães literários, o que não deixou de ser um exercício de luto”, conta ao Estado de Minas, referindo-se à perda da mestiça Lalinha, mistura de cocker com vira-lata. “O exercício dos afetos na convivência com ela foi uma das melhores experiências que já tive”, acredita.
Iniciada formalmente com artigo publicado em 2006 em revista da Unicamp, a pesquisa resulta do interesse da autora de “O livro dos nomes” por enciclopédias e bestiários. “Comecei a pensar os animais por outro prisma, como viventes, e como essa vivência aparece na literatura”, lembra.
Leia: Maria Esther Maciel analisa subjetividade dos animais na literatura
Na entrevista a seguir, Maria Esther comenta alguns dos temas do livro “Animalidades”, como a análise das representações dos animais nas obras de Virginia Woolf, Paul Auster, Hilda Hilst, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade. Ela conta que o trabalho está longe de se encerrar no livro editado – com esmero e sofisticação, em um belo projeto gráfico, com muitas ilustrações – pela Instante. “É uma pesquisa que se expande o tempo todo, não paro de descobrir outras possibilidades”, conta, antecipando que a representação dos animais na literatura indígena e em textos produzidos por antropólogos está entre os próximos campos de estudo.
Como o livro desdobra uma pesquisa iniciada em “O animal escrito” (2008) e desenvolvida também em “Literatura e animalidade” (2016)?
Na verdade, essa pesquisa começou antes da publicação de “O animal escrito”, mas foi nesse pequeno livro que minhas reflexões sobre a presença dos animais na literatura se tornaram mais efetivas. Nele, fiz um panorama das diferentes maneiras como os bichos foram abordados por escritores do passado e do presente, ou seja, tracei uma espécie de roteiro para que o tema pudesse ser, posteriormente, aprofundado e desenvolvido. No intervalo entre esse livro e o “Literatura e animalidade” ainda organizei outro, com a participação de vários autores brasileiros e estrangeiros, a que dei o título de “Pensar/escrever o animal”. Nesse momento, eu já estava mais atenta às questões éticas que envolvem as nossas relações com os viventes não humanos e me propus a investigá-las no campo da literatura, com vistas a um novo livro. Foi assim que surgiu o “Literatura e animalidade”, em que percorro esse universo a partir de uma incursão não apenas em textos literários, mas também na filosofia. Autores como J.M.Coetzee, Michel de Montaigne, Jacques Derrida e Elisabeth de Fontenay foram fundamentais para esse trabalho, assim como a obra de Guimarães Rosa e a poesia moderna ocidental. Dando continuidade e, ao mesmo tempo, ampliando o repertório literário, compus o “Animalidades”, detendo-me mais demoradamente nos “eus” não humanos encenados em poemas e narrativas, além de elaborar conceitualmente o que chamei de “zoobiografias”, ou seja, relatos literários sobre vidas de animais. Nesse livro introduzo ainda uma dimensão mais ecológica, ao enfocar as poéticas da natureza na literatura brasileira contemporânea.
A representação na literatura da subjetividade dos não humanos é um dos temas do livro. Como selecionou exemplos dessa representação na literatura? O que é mais marcante, em sua visão, nessa representação em obras de autores como Virginia Woolf e Paul Auster?
Para lidar com as figurações da subjetividade dos não humanos na literatura, primeiro percorri os vários sentidos que a palavra animal ganhou ao longo dos tempos, mostrando como, sobretudo a partir do final do século 19, os bichos passaram a ser retratados na literatura como sujeitos dotados de sensibilidade, inteligência, habilidades e pontos de vista sobre o mundo. Para selecionar os exemplos, fiz inicialmente um inventário de personagens animais que condizem com essa abordagem. Mas privilegiei aqueles que mais me instigaram e me apaixonaram ao longo da pesquisa. Coincidiu que, após ler o romance “Timbuktu”, de Paul Auster, fui convidada a escrever o posfácio de uma nova tradução brasileira de “Flush: uma biografia”, de Virginia Woolf, e me encantei com essas duas biografias ficcionais: uma de um vira-lata e outra de um cocker spaniel inglês. Vi pontos de afinidade e dissonância entre elas e resolvi sondá-las no livro. Tanto Auster quanto Woolf veem seus personagens caninos como sujeitos com pontos de vista próprios, que mantêm relações de grande complexidade com os humanos e a vida ao redor.
Por que dedicar aos cães o que você chama de “um espaço privilegiado no conjunto” e abrir um “canil literário”? E poderia justificar a escolha das mortes caninas analisadas no livro?
Logo que minha cachorra Lalinha morreu, aos 15 anos de idade, comecei uma nova fase de minha pesquisa sobre zooliteratura, passando a me dedicar aos cães literários, o que não deixou de ser um exercício de luto. Ao longo dessa investigação, encontrei um verdadeiro canil na literatura de diversos tempos e países, além de algumas reflexões muito interessantes sobre o tema, como as das pensadoras americanas Marjorie Garber e Donna Haraway, e a do jornalista/escritor francês Roger Grenier. Após tratar das biografias caninas de Woolf e Auster, analisei os cães de Machado de Assis e Clarice Lispector, passando, em seguida, a me concentrar em obras que versam sobre mortes de cães. Eu já pensava em escrever algo sobre isso, motivada sobretudo pela impressionante cena da morte da cachorra Baleia no romance “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, assim como a da cadela Karenin em “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera. Mas quando vi o documentário “Coração de cachorro” que a artista Laurie Anderson fez em homenagem à sua querida amiga canina Lolabelle logo após sua partida, não hesitei em ir adiante nesse enfoque também no cinema. Iniciei com o cão Argos, da “Odisseia” de Homero e, então, passei a investigar outros livros e filmes, incluindo, é claro, a adaptação que Nelson Pereira dos Santos fez de “Vidas secas”. Apresentei esse trabalho num colóquio em Portugal e, a convite de uma das organizadoras, transformei-o em um artigo para ser publicado numa revista francesa. Ao compor o livro “Animalidades”, ampliei e transformei esse texto num dos capítulos. Acho que é o meu capítulo preferido dentre todos, e o que mais me emocionou no processo de escrita.
"Clarice Lispector e Hilda Hilst embaralharam os limites entre o aquém e o além do humano, transformando a animalidade em uma via de acesso possível à esfera do sagrado, como se vê em 'A paixão segundo G.H.' e nos poemas hilstianos dirigidos a Deus"
Quais as semelhanças e diferenças entre a forma que os animais aparecem nas obras de Clarice Lispector e Hilda Hilst?
Clarice Lispector e Hilda Hilst, duas das vozes animalistas mais instigantes da literatura moderna brasileira, levaram bichos de várias espécies para seus textos e exploraram, cada uma à sua maneira, as relações entre animalidade, humanidade e divindade. Ambas conviveram com cães e escreveram sobre eles, sendo que Hilda acolheu em sua chácara em torno de uma centena de vira-latas, com os quais manteve uma relação de afeto e amizade. Clarice se ateve aos exercícios de animalidade do humano ao tratar da troca de olhares entre personagens femininas e seres não humanos, como o búfalo e a barata, enquanto Hilda fez associações poéticas entre a mulher e a ave, o poeta e o porco, a morte e o cavalo, só para mencionar aqui algumas. As duas escritoras embaralharam também os limites entre o aquém e o além do humano, transformando a animalidade em uma via de acesso possível à esfera do sagrado, como se vê em “A paixão segundo G.H.” e nos poemas hilstianos dirigidos a Deus. Se Clarice é mais visceral, Hilda é mais simbólica na apresentação dos bichos em seus textos. O erotismo também atravessa a escrita animalista de uma e de outra. Enfim, fica difícil expor, em poucas palavras, a complexidade e os paradoxos que caracterizam as escritas dessas autoras sobre os animais.
E Drummond? Como se revela, em versos, o amor do poeta pelas criaturas não humanas e no que você chama de “o tempo da fazenda, o tempo das vastidões”?
Drummond mereceu um capítulo inteiro no livro, por ter construído uma “zoopoética” riquíssima e ter sido um precursor ao abordar a fauna brasileira sob a perspectiva ecológica. Não bastasse ter levado muitos animais rurais do interior de Minas para sua poesia, em especial os bovinos – tão presentes na sua infância, no tempo da fazenda e das vastidões do campo – deteve-se nos animais em extinção, defendendo-os com ternura e compaixão. Tratou também das práticas corriqueiras de exploração e crueldade contra as vidas não humanas, além de mostrar o quanto a natureza está sempre surpreendendo a nossa razão e as nossas certezas sobre o mundo. Um outro dado interessante é que ele foi um militante da causa animal, tendo criado em 1970, junto com a jornalista Lya Cavalcanti, um jornal dedicado à defesa dos bichos. Para não mencionarmos as muitas crônicas que escreveu sobre o tema. Em sua obra, os animais são sujeitos dignos, dotados de saberes sobre a vida e merecedores de respeito e empatia. Creio que essa face animalista drummondiana precisa ser mais estudada, já que sobre ela poderia ser escrito um livro inteiro.
Em um dos últimos capítulos, há o estudo da representação da animalidade na produção contemporânea nacional. Chama atenção a análise desse aspecto na poesia da amazonense Astrid Cabral. O que a interessou nessa obra? Poderia explicar aos nossos leitores o conceito de “escritas híbridas”?
Ao procurar livros de poesia sobre animais publicados no Brasil nas duas últimas décadas, encontrei o “Jaula” de Astrid Cabral, que é uma coleção de poemas sobre o mundo zoo, com ênfase em muitos bichos amazônicos. Fiquei encantada com o livro e me pus a vasculhar mais a obra da autora, nela encontrando muitas outras referências importantes para a minha pesquisa. Astrid é uma escritora veterana, que já publicou mais de vinte livros em diferentes gêneros, sempre com um olhar muito peculiar sobre as paisagens e cenários da Amazônia e de outros territórios fora do Brasil. Sua “zoopoesia” é diversificada, evocando, de maneira sensível, a onça, o boto, os búfalos, a lagartixa, as aves, os sapos e a serpente, entre outros animais.
Quanto às “escritas híbridas”, elas são aquelas que se furtam às classificações, não só por serem uma mistura de prosa, poesia, roteiro de teatro, fragmentos e outras modalidades textuais, mas também por mesclarem línguas, referências literárias e culturais diversas. Dois autores brasileiros contemporâneos que as exercitam com muita inventividade são o mato-grossense Sérgio Medeiros e a paranaense Josely Vianna Baptista. Ambos dialogam com as poéticas de vanguarda e as culturas indígenas, além de evocarem animais, plantas e seres mitológicos. Ler esses autores despertou, inclusive, o meu interesse em estudar – numa próxima etapa de meus estudos – a presença de animais nas literaturas ameríndias e em obras contemporâneas que, em diálogo com as culturas indígenas, se voltam para o mundo vivo, para a natureza.
O livro é dedicado a Eneida Maria de Souza (professora emérita de literatura da UFMG, Eneida morreu em março último aos 78 anos). Como ela influenciou a sua formação intelectual e como ela a influenciou como escritora e leitora?
Eneida foi minha professora de literatura na graduação e na pós-graduação, além de colega e amiga querida. Teve uma relevância enorme para minha formação literária e acadêmica, apresentando-me pensadores contemporâneos que acabaram por se tornar grandes referências para o meu trabalho, como Roland Barthes, Julia Kristeva, Derrida e Foucault. Seus escritos inovadores sobre Borges iluminaram muito os meus trânsitos na obra borgiana. Aliás, conheci o “Manual de Zoologia Fantástica”, de autoria do escritor argentino, graças a ela e suas aulas. Com Eneida aprendi a ser contemporânea do meu próprio tempo e a buscar uma visão prismática, multidisciplinar, sobre a literatura. Além disso, ela sempre esteve presente em todos os momentos importantes de minha vida e, desde os tempos de graduação, incentivou meu trabalho como escritora. Quando ela partiu no ano passado, eu estava quase finalizando o “Animalidades”, o que me levou a homenageá-la no livro com a dedicatória.
A convivência com os animais é também uma forma de aprendizado e de exercício de afetos. Nesse sentido, como Lalinha contribuiu, ainda que indiretamente, para a sua análise?
Como já mencionei, a Lalinha foi fundamental para esse livro e, cabe acrescentar, para toda a minha pesquisa sobre animais na literatura, desde o início. O exercício dos afetos na convivência com ela foi uma das melhores experiências que já tive. Soma-se a isso a minha intensa interação com animais rurais e domésticos durante minha infância e adolescência no interior mineiro. Cheguei a ter um porco de estimação, o Zeca, um dos animais mais inteligentes e afetivos que já conheci. O papagaio de minha avó paterna também teve um papel afetivo e efetivo na minha amizade com os seres não humanos, assim como tiveram todos os gatos e cães que havia no quintal de minha casa em Patos de Minas. Todos esses bichos me ensinaram muito e me levaram a realizar essa pesquisa literária que ainda não tem data para terminar.