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Estado de Minas PENSAR

'Cara paz' marca a estreia da italiana Liza Ginzburg no Brasil

Livro sobre duas irmãs de uma família "muito estranha" é o primeiro romance editado no Brasil da escritora, que vem para o Fliaraxá e o Sempre um Papo em BH


23/06/2023 04:00 - atualizado 23/06/2023 16:34
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Liza Ginsburg
Liza Ginsburg: Clarice Lispector entre as principais influências (foto: Divulgação/Bárbara Ledda)

Giovana Proença
Especial para o EM


Primeiro romance de Lisa Ginzburg a chegar ao Brasil, "Cara paz" tem tudo para cair no gosto dos leitores brasileiros. A caminho de Minas Gerais para eventos em Araxá e Belo Horizonte, a escritora italiana afirma - em português fluente, vale destacar - ter uma química com o país, que já marcou presença em sua ficção. Ao lado da conterrânea Elsa Morante, Lisa aponta Clarice Lispector entre as suas principais influências: "Ela reúne as experiências humanas perto do coração selvagem. Morante também é assim". A essência de "Cara paz", não por coincidência, está nos espinhosos laços familiares. Na trama de Lisa Ginzburg, as irmãs Maddalena e Nina pensam em sua situação com crueza: "orfãs sem sê-lo". A mãe, Gloria, foge de um arranjo familiar repressivo. Infeliz com o casamento, ela reconstrói a vida longe do lar.

Leia: Fliaraxá confirma presença da italiana Lisa Ginzburg

As irmãs crescem em meio a uma família disfuncional ou, como define a escritora, simplesmente "muito estranha". As memórias dessa infância anômala são narradas por Maddalena, já adulta, e encantaram a editora brasileira de "Cara paz", Simone Paulino. "Ao longo da história, ao se transformarem em mulheres, as irmãs oscilam num movimento de espelhamento e oposição para conseguirem se manter à tona das pequenas e grandes tempestades existenciais que as assolarão durante a vida", escreveu a editora da Nós, à época do lançamento nacional, em abril último: "Cara paz' é um dos livros mais bonitos, fortes e tocantes entre os tantos que eu já publiquei".

Nas letras italianas, o sobrenome de Lisa é célebre. Neta de Natalia Ginzburg (1916-1991) - a autora de "Caro Michele"e "As pequenas virtudes"-, ela aponta que a influência da avó contou na escolha da carreira de escritora: "Minha avó teve tempo de ler uma novela que escrevi, ela me encorajava muito".

Lisa terá dois compromissos em Minas Gerais. Será uma das principais atrações da 11ª edição do Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), que será realizado entre 5 e 9 de julho, na cidade mineira. A autora italiana fala ao público de Araxá no sábado, dia 8, às 21h. Dois dias depois, em Belo Horizonte, participa de edição especial do projeto "Sempre um papo"na Casa Fiat de Cultura. Confira, a seguir, a entrevista de Lisa Ginzburg ao Pensar:

Os laços familiares se destacam em "Cara paz". Como foi construir essas relações?
A primeira imagem que chegou à minha mente foi Nina. Mas, pelos olhos de Maddalena. Gosto da ideia de uma personagem que se cria pelos olhos de um outro. Essa é uma dinâmica presente em minha maneira de narrar. A trajetória dos olhares me interessa muito. Nós também somos o que os outros veem. Vivemos em uma cultura de imagens. Nós, escritores, estamos sempre publicando fotos. É um exagero. Porém, se você escreve um livro, esse livro começa a viver nos olhos de outras pessoas. Você se compreende por meio dessas leituras. Inventei, em "Cara paz", uma família muito estranha. Estranha pois há dor, zonas escuras de vazio, ausências, a falta de função de pai e de mãe. No centro, está a trajetória do olhar. Na relação das irmãs, o mais importante é que elas se olham e se definem pela perspectiva da outra.

De que modo você incorporou novos elementos à imagem inicial que você tinha para o romance?
Primeiro, foi Nina. Logo depois, Nina pelo olhar de Maddalena. Eu tinha claro o ponto de vista: a voz narrativa seria a de Maddalena. A partir disso, as duas começaram a tomar forma. É um trabalho semelhante ao do escultor. Você tem que modelar e afinar a estrutura plástica da personagem. Com Nina foi mais fácil. Imaginei ela linda, charmosa e egocêntrica. Conheço muitas mulheres assim. Maddalena foi mais complicada. Imaginei ela igualmente linda, mas com complexos. Há uma insegurança. No fundo, ela se sente menos bonita. Mas Maddalena tem uma força interior que necessitava de uma aparência um pouco menos maravilhosa. São coisas que reparo, sempre fico muito atenta às dinâmicas familiares. Foi um exercício paralelo de criação. Quanto mais Nina se definia, mais Maddalena também ganhava contornos, como um espelho.

O que você levou em consideração para criar os contrastes entre Maddalena e Nina?
É uma questão de imagem. Em outros termos, são obras da imaginação. Criei situações em que as duas poderiam mostrar ao leitor como elas eram, como foi a infância delas e quais são as suas condições psicológicas. Chegou naturalmente, não foi muito programado. Tinha esse esboço de duas irmãs em uma situação de falta e a ideia de uma solidariedade obrigatória entre elas. As duas têm que ser solidárias - elas não podem romper, pois, se não, a família acaba. O que estava claro desde o começo era a estrutura familiar, em sua anomalia. Porém, as imagens e situações chegaram naturalmente. Você tem que escutar o que os personagens dizem e o que a fantasia dita. É um trabalho de humildade. Você fica calada e espera que esses elementos te encontrem. Tem escritores que trabalham de modo diferente, mas eu sou assim. No começo, o que deve ser claro é a estrutura psicológica. O resto vem naturalmente.

Quais autores você aponta como as suas principais influências?
Eu li muito Elsa Morante (conhecida no Brasil por "A ilha de Arturo"). Foi uma autora que me marcou, pois passei a adolescência lendo os seus romances. Depois, Clarice Lispector. Eu a amo muito, até escrevi um pequeno livro sobre ela. Contudo, foi uma leitura madura, já não era jovem. Tem também Flannery O'Connor. Falei, principalmente, de escritoras mulheres. Mas as novelas de Tchekhov me mostraram que não se pode ter medo da profundidade da alma. Ele escreve sobre processos psicológicos que são profundos e simples. A simplicidade é a característica que mais amo nos grandes escritores. Quando você consegue compreender o tecido humano, você consegue ser simples e natural. Gosto de uma escrita que não é artificial ou construída em demasia.

Como você vê a trajetória de Gloria, personagem que ousou se libertar da situação familiar repressiva em que se encontrava?
Gloria, mulher estrangeira, paga o preço de sua condição. A Itália é um país que tem muito preconceito com estrangeiros, particularmente mulheres. Acho a situação que imaginei muito possível. Mas, ela é também um exemplo positivo. Gloria oferece a si mesma a possibilidade de se reconstruir, como mulher e como trabalhadora. Ela é bem afirmada na profissão, encontra um novo homem e transmite às filhas uma imagem positiva. Acho isso importante, se não, seria apenas uma história de humilhação da mãe. As duas filhas poderiam ver essa mãe apenas como absurda. Mas, ela consegue ser feliz. Quando você tem filhos, conseguir mostrar que você tem direito a ser feliz é muito importante. Aqui na Itália, há muitas separações, histórias de mulheres que ficam sozinhas, tristes a vida inteira e imersas na melancolia. Assim, é bom ter uma mulher que imagina uma vida por ela mesma, consegue fazer essa vida e falar às filhas com muita sinceridade: "não conseguia ficar naquela situação". Imaginei isso como algo muito corajoso. As filhas compreendem, por fim, essa mãe.

A memória é o centro de força do romance. Qual o lugar do passado dentro da sua ficção?
Tenho a tendência de criar idas e vindas da mente com relação ao passado. Na minha vida, penso muito sobre as coisas que já aconteceram. Se existisse uma máquina capaz de contar os momentos do dia em que a mente vai ao passado, creio que ela confirmaria que isso ocorre muitas vezes. Meu presente é cheio de lembranças. O passado se acumula e reconstituir isso na escrita não é fácil. Virginia Woolf foi uma grandíssima escritora, no sentido de transmitir o que acontece na mente quando ela vai em busca do que já passou. Do mesmo modo, o tempo presente dá sentido ao passado. No "Cara paz", temos a impressão de que Maddalena tem a custódia da memória, já Nina é fluída, jovem e inquieta. Há muita coragem em Maddalena, pois ela percebe que há uma parte do passado que não está resolvida. Enquanto ela não viajar, fisicamente, até a Roma de sua infância, ela não pode resolver a sua vida e ne

Em italiano, há um jogo de palavras entre "Cara pace" [Cara paz] e "Carapace" [Carapaça]. Como o título do livro chegou até você?
Gosto de jogos de palavras. Reparei que o termo "carapaça" se repetia no romance. A maior parte do livro já estava escrita, mas ainda não tinha o título. Pouco antes da finalização da primeira versão, reparei que a ideia da tartaruga era recorrente. No mesmo tempo que percebi isso, imaginei que Maddalena estava falando com ela mesma, como um verdadeiro monólogo interior, repetindo: "carapaça". O jogo de palavras chegou sozinho. Quando separei o termo, tomei um susto, pois me dei conta que na palavra dividida, "cara pace"[cara paz], tinha o sentido do romance. Lembra a carapaça da tartaruga, algo que você inventa para se proteger, mas também um sentido de sabedoria. Em italiano, dizemos algo como "Santa pace!". Alguém sábio olha para trás e diz: "Cara pace!", no sentido de que foi bom, mas passou. A voz de Maddalena é calma. Ela se lembra de tudo, transmite essas memórias e está em paz. A sua viagem é a busca pela paz. Há a ideia de proteção, de fechar-se como defesa. Porém, acima de tudo, temos uma harmonia.

“CARA PAZ”
Lisa Ginzburg
Tradução de Francesca Cricelli
Editora Nós
256 páginas
R$ 70 


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