“Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós mesmos.”
(Frase de Franz Kafka em parede na entrada da editora Autêntica)
Livros são empilhados e embalados para expedição no térreo da sede mineira do grupo editorial Autêntica em uma rua tranquila do Bairro Silveira, Região Nordeste de Belo Horizonte. Livros são idealizados, avaliados, produzidos e editados para os sete selos do grupo no andar de cima. Livros estão nas frases de Kafka, Machado de Assis, Castro Alves e outros autores espalhadas na parede da entrada da editora onde nascem diariamente as obras que irão se juntar aos mais de 1,6 mil títulos lançados pela diretora editorial, Rejane Dias, e a equipe de 60 profissionais.
Mineira de Itabira, Rejane se tornou uma das referências do mercado brasileiro ao consolidar a Autêntica como um dos maiores grupos editoriais do país. “Há uma rede de livrarias que informa que estamos entre os 10, outra entre os 14. Eu acho que podemos dizer com segurança que somos umas das 12 que mais vendem no varejo”, conta, em entrevista na sede do grupo editorial.
Jornalista com mestrado em letras, montou agência de comunicação no início dos anos 1990. O negócio caminhava bem com a produção e edição de publicações até ela perceber que a onda da internet se transformaria em um tsunami. “Precisava achar um outro business e pensei: por que não uma editora, se a minha relação com o livro é tão visceral?”, lembra. Adicionou à compulsão de leitura a experiência adquirida em produção gráfica e fundou a Autêntica em 1997, em Belo Horizonte.
Os primeiros anos da editora foram dedicados a títulos voltados para o público universitário. Mas os resultados não eram animadores em um “negócio dificílimo, que nem prospecção de petróleo”. Rejane reconhece que a literatura de entretenimento não estava no radar até iniciar em 2008 a publicação de Paula Pimenta, “autora de livros cor-de-rosa”, na própria definição da mineira que já vendeu mais de dois milhões de exemplares (média de 100 mil por ano) de títulos como os das séries “Fazendo meu filme” e “Minha vida fora de série”.
Rejane percebeu, então, que editar iria muito além de avaliar e aprovar originais. Para um negócio lucrativo, ela e sua equipe teriam de se dedicar igualmente às atividades inerentes ao tripé editoração-comunicação-vendas, o que inclui negociações com as redes de livrarias para “pilhar” lojas com dezenas de exemplares de maior apelo de seus autores, organizar turnês de lançamento, manter conversas constantes com livreiros. “Aqui, se for preciso, todo mundo carrega caixa”, ressalta. O resultado é o crescimento de 58,8% em relação a 2019, impulsionado por best-sellers recentes como “Talvez você deva conversar com alguém” (mais de 260 mil exemplares vendidos desde 2020) e “Nação Dopamina” (quase 60 mil vendidos desde abril de 2022), ambos do selo Vestígio. “Há também livros recentes de fantasia e do selo Gutenberg que caminham muito bem”, revela.
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Intuição? Não com Rejane. Ela utiliza métricas de avaliação, também confere a evolução das vendas ao dormir e acordar: “É preciso respeitar os números, não tem nada feio nisso. Eles me dizem sobre o mundo real em um negócio que é cheio de ilusões”. Diz buscar o que chama de “calibragem” entre a expectativa de vendas e o faturamento obtido. Destaca as áreas de saúde mental e de ficção para o público juvenil como aquelas em que conseguiu, nos últimos anos, acertar a tal “calibragem”. “Publicar é prestar atenção no contexto, no desejo do leitor”, acredita. “Muitas vezes também vamos atrás de livros que possam responder às questões da conjuntura atual”, complementa.
“Nós, que não estamos em São Paulo ou no Rio, temos que fazer todo esforço para fazer melhor”, disse a ela o tradutor catarinense Tomaz Tadeu, responsável pelas versões em português de obras consagradas de James Joyce e Virginia Woolf. Rejane guardou o conselho e adicionou Minas Gerais à receita.
“Somos sóbrios, olhamos para dentro, isso tem muito da mineiridade”, acredita Rejane. Sobre os clássicos, com a concorrência muito mais forte por se tratar de obras que caíram em domínio público, o objetivo é definido: ter a melhor tradução possível. E fazer que esse trabalho seja reconhecido pelo leitor.
Como a edição de “Ética”, de Spinoza, que ela considera um divisor de águas na história da Autêntica. “A partir daí, começamos a valorizar mais a tradução e a publicação dos clássicos, divididos entre as obras clássicas de filosofia e psicanálise mais as traduções literárias voltadas para os públicos infantil, juvenil, adulto e os clássicos da Antiguidade: latim, grego e acádio, este traduzido por Jacyntho Lins Brandão”, lembra.
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“Errar o mínimo possível”
Na edição, Rejane costuma exigir de sua equipe a identificação de “lombadas” internas do livro. É o objetivo: publicar livros “sem lombada”, que deslizam – e não derrapam – no caminho da leitura. “Um livro de entretenimento, por exemplo, não pode ter 50 páginas que sejam chatas, tem que prender do início ao fim. Assim como um clássico não pode ter tradução ruim”, exemplifica. Por isso, tem como lema: “Errar o mínimo possível e encontrar livros que cumpram o seu papel. Não é simples, mas é muito bom que seja assim.”
Rejane admite que, tempos atrás, “comprou a futurologia” que os livros impressos deixariam de existir. “Não é o que está acontecendo: o impresso ganhou uma sacralidade ainda maior, aumentou a percepção de que o impresso é para sempre, especialmente entre os mais jovens. Dois dos segmentos que vendem menos e-book são o juvenil e o infantil”, revela.
Ela explica a decisão de concentrar a produção em Belo Horizonte, mesmo após a consolidação da Autêntica como um grupo nacional: “Só vejo vantagem. A produção está aqui. Temos vocação para o detalhe, para a ourivesaria”, afirma, não sem antes lembrar de quando decidiu retirar a referência à capital mineira nas folhas de rosto de suas edições. “Achava, no início, que colocar o nome de uma cidade fora do eixo atrapalhava mais do que ajudava. Agora não sinto mais isso”, conta.
A rotina de Rejane se divide entre Minas e São Paulo. “BH é uma cidade linda. Quando estou na Savassi, faço tudo a pé e as livrarias de rua são um milagre, gosto de marcar reuniões de trabalho nelas. Mas me sinto à vontade em São Paulo, a intensidade da cidade alimenta a minha inquietação”. E de Itabira, o que ficou além do Drummond em um dos retratos na parede da Autêntica? “O hábito de leitura. Foi lá que me tornei uma superleitora, cheguei a ser homenageada no colégio onde estudava por ter sido a aluna que mais havia lido”.
As leituras da executiva do grupo não se restringem aos títulos lançados pela Autêntica. “Leio muitos livros de outras editoras”. “Torto arado”? “Li e gosto muito. É uma felicidade quando um livro bom se torna um blockbuster.”
Rejane assume ser menos leitora de poesia do que de prosa e mais de romances do que de contos. E enxerga, no momento, cenário mais favorável à produção ficcional do que alguns anos atrás. “A ficção é uma maneira espetacular de escapar da realidade do mundo estressante. Mas estamos com dificuldade de vender um determinado tipo de ficção realista que reproduz, por exemplo, a violência dos grandes centros urbanos”, adverte.
Ela se sente especialmente realizada ao consolidar a Autêntica como uma casa editorial e seus sete selos, “cada um com seus sucessos e fracassos”. “É muito bom fazer um autor e acompanhar a carreira dele”, citando os ensaístas Vladimir Safatle e João Cezar de Castro Rocha como exemplos de autores que deseja manter por longo tempo.
A diretora editorial cita Virginia Woolf, Annie Ernaux e Deborah Levy, um dos destaques do selo Autêntica Contemporânea, como exemplos marcantes de vozes femininas. O fato de ter maior número de mulheres no trabalho de edição é considerado decorrência natural da crescente ocupação de espaços no século 21. “Além disso, há muito mais mulheres escrevendo e sempre houve mais mulheres lendo: há uma fome histórica, que somente agora está sendo saciada”, acredita.
Sobre o mercado editorial, Rejane alerta: “Continuo vendo pessoas abrindo editoras sem se preparar do ponto de vista do negócio. É possível evitar certos erros.” E cita alguns deles; falta de controle sobre dados de venda e de volumes no estoque, ausência de plano de reimpressão. E os erros da Autêntica? “Publiquei o primeiro livro da Paula Pimenta de um jeito completamente errado. Tivemos que refazer o livro. Outro erro foi cair em ondas passageiras, como as dos livros de colorir, dos blogueiros, de celebridades. É preciso ter muito cuidado com as ondas. O long seller é mais importante do que o livro de oportunidade”, ensina.
Raio X
Os últimos anos e os números de publicação do grupo Autêntica
- 2021 – 92 livros lançados
- 2022 – 114 livros lançados
- 2023 - 110 livros a serem lançados até o fim do ano
Entrevista/ Rejane Dias
“Adoraria ter publicado toda a coleção ‘Para gostar de ler”’
Quais os maiores desafios de ser uma editora no Brasil?
Eu penso que um deles é o mesmo desafio que qualquer empresário bem-intencionado enfrenta neste país: a falta de estabilidade, de um contexto que nos permita fazer planejamento a longo prazo. É difícil conviver com a impossibilidade de não sabermos em que contexto econômico estaremos em alguns meses. Portanto, até para planejar o ano corrente é difícil. Outra dificuldade diz respeito aos programas de compras governamentais, e isso se aplica a compras municipais, estaduais e federal. Elas podem ser interrompidas ou procrastinadas, como no governo anterior; podemos ter um edital de convocação para inscrição de livros em prefeituras e/ou estados e isso se arrastar por anos, anos mesmo. Rrecentemente, fizemos uma venda para uma prefeitura cuja lista de livros havia sido escolhida há mais de quatro anos, e já havíamos praticamente interrompido a publicação de dois títulos, por exemplo.
Quais serão os próximos capítulos da editora Autêntica?
Gosto do rumo que o Grupo Autêntica está tomando. Gosto de ver como editores e editoras de cada selo estão depurando os seus respectivos catálogos. Me sinto mais inteira também vendo como tomamos consciência de que vale muito a pena investir em livros que possam ter vida útil longa, sem abrir tanto espaço para livros do momento, para ondas que nos empolgam, mas que passam rapidamente. Penso que a ideia de catálogo durante a pandemia da COVID-19 voltou com força, até porque o que chamamos de backlist vende mais nas lojas online, as ponto.com, do que nas lojas físicas. Então, para o futuro breve espero que publiquemos bem, com foco, fazendo o melhor para que esses livros possam permanecer em catálogo por muito tempo. Também acredito que estaremos concorrendo com grandes editoras em pé de igualdade em determinados segmentos, porque de fato estamos acertando bastante nas nossas escolhas. Também acredito que eu, pessoalmente, possa me dedicar mais aos livros de que gosto mais como leitora, como a ficção contemporânea, publicada hoje pela Autêntica Contemporânea, mas também pela Vestígio e pela Gutenberg, com foco em grupos de leitores diferentes. Também espero que o Grupo como um todo se torne cada vez mais lucrativo e menos dependente das compras governamentais, mas elas serão sempre bem-vindas.
Que livros ou autores, brasileiros ou estrangeiros, gostaria de ter sido a primeira a editar?
Há inúmeros autores e autoras, brasileiros e estrangeiros, que gostaria de ter publicado. Eu gosto de uma literatura de qualidade, boa de ler, que muitas editoras brasileiras fazem muito bem. Por exemplo, o Domenico Starnone e o Pedro Mairal, ambos da Todavia, são autores que eu gostaria de ter publicado. De certa forma, pautamos o selo de ficção contemporânea com base nessa premissa: “livros muito bem escritos e bons de ler”. Adoraria ter traduzido pela primeira vez no Brasil a fabulosa trinca de língua inglesa, Ian McEwan, Philip Roth e J. M. Coetzee, e a fabulosa Natalia Ginzburg. O meu preferido ainda é o Nabokov. Entre os nacionais, eu adoraria ter publicado autores como Graciliano Ramos e Lygia Fagundes Telles. Mas eu adoraria mesmo ter publicado toda a coleção “Para gostar de ler”, porque foi com ela que me tornei leitora.