Schneider Carpeggiani *
Especial para o EM
Ele não está. Foi a sensação inicial que tive há uns 10 anos quando visitei Blanes, cidade catalã que fica a menos de duas horas de trem de Barcelona. Na memória que guardo, Blanes era um balneário meio “mofado”, de vento intenso a castigar o rosto, com uma espécie de rochedo dos suicidas a recepcionar os turistas, que desembarcam na sua estação. Havia uma feirinha de artesanato (ou “dos hippies”, como ainda se dizia por lá) perto da praia, cercada por inúmeros restaurantes servindo paella de arroz negro e uma livraria, na época, já quase sem livros. Os seus moradores soavam práticos na simpatia monossilábica com que recebiam os vários tipos de visitantes, que se aglomeram sobretudo a partir dos últimos dias de maio. Há aqueles que chegam em busca das promessas do verão da Costa Brava. E também os que, ainda que em número bem mais reduzido, não estão necessariamente à procura de sol. Estão ali por serem bolañistas selvagens.
Blanes seria uma atração não tão sui generis do mapa turístico catalão, se lá não tivesse chegado, em 1985, um chileno de farta cabeleira, de 32 anos, após temporadas (ou mesmo exílios?) em cidades como Girona, Barcelona e Cidade do México. Tinha então planos de ganhar a vida como um pequeno comerciante (um dos “hippies” da feirinha local), enquanto se arriscava em concursos literários. Mas acabou se tornando um dos nomes mais importantes da literatura contemporânea (talvez o mais influente da América Latina, após a geração de Gabriel García Márquez e de Mario Vargas Llosa, a do chamado ‘Boom Literário’ dos anos 1960): Roberto Bolaño, falecido há 20 anos, num 15 de julho, vítima de doença hepática degenerativa, após uma dramática espera na fila para transplante de fígado.
Mesmo que relutasse a habitar num sentimento de desterro, que ironicamente chamava de “triste folclore dos exilados”, e insistisse que sua pátria consistia nos filhos e na sua biblioteca, Bolaño colou sua imagem à de Blanes, tanto na escrita quanto na vida pessoal. Lá formou família, escreveu suas principais obras e permaneceu até os últimos dias. Ainda que já atraísse uma legião de admiradores do escritor chileno, com até jovens autores investindo em temporadas literárias num dos apartamentos que o escritor viveu, a cidade não contava com uma rota bolañista oficial, quando lá estive.
A sua passagem pelo balneário, então, era registrada apenas numa placa na biblioteca pública municipal e na memória dos moradores que aceitavam trocar algumas palavras com os bolañistas selvagens perdidos. Tenho anotado até hoje o depoimento da proprietária de uma loja próxima à rua onde Bolaño morou, que é singular em sua banalidade despreocupada. Quando perguntei se ela tinha alguma lembrança do ex-vizinho famoso, disse apenas: “Era um homem simpático, mas estranho... Um artista”.
Atualmente é possível encontrar, no site oficial de Blanes, um guia em PDF com uma rota oficial para os leitores de Roberto Bolaño seguirem. Já não era sem tempo. Em 2023, há uma fila de efemérides em torno da vida e da obra do escritor: são os 70 anos de nascimento, os 20 anos da morte, os 25 anos do lançamento do seu livro mais famoso, “Os detetives selvagens” (ganhador do Prêmio Rómulo Gallegos), e os 30 anos do seu romance de estreia solo, “Pista de gelo”, que se passa num balneário na Costa Brava idêntico a Blanes, mesmo que a cidade catalã jamais seja nomeada.
Mas há ainda uma outra efeméride, tão ou mais poderosa que todas essas outras, sobretudo para começarmos a entender algumas das chaves da literatura de Bolaño: os 50 anos do golpe de estado, o 11 de setembro chileno, que levou Augusto Pinochet (1915-2006) ao poder até 1990 e deixou como herança uma das ditaduras mais sangrentas da história da América Latina.
Se hoje o PDF do guia da rota Bolaño ajuda a localizar os endereços de Blanes que o escritor conviveu na sua rotina, o curioso é que muitos deles nem mais existem. Viraram ilusões adequadamente feitas para turistas. O que só me fez pensar o Ele não está, já quando da minha visita ao balneário há dez anos. No entanto, difícil mesmo é traçar a sua relação com a capital Santiago ou com o Chile em si. Na adolescência, aos 15 anos, mudou-se para o México com a família e retornou apenas em 1973 (justamente naquele 1973), para ajudar no projeto de reconstrução chilena do presidente Salvador Allende (1908-1973).
Pistas falsas
Com o golpe de Pinochet, no entanto, teria sido preso por alguns dias, após ter sido denunciado por colegas que se aliaram ao novo regime (os tais agentes secretos do golpe, ou do que ele chamava também de agentes secretos do “mal absoluto”, um tema caro aos seus livros). Liberto, retornou ao México, como o exilado que afirmava não acreditar em exílio. Essa é uma época da sua vida bastante obscura e cheia de informações desencontradas, muitas delas proferidas pelo próprio Bolaño em entrevistas. São as pistas falsas típicas de alguém que se acreditava subversivo, clandestino ou simplesmente um fugitivo.
Ainda falta a escrita de uma grande biografia, que junte as peças e confronte o que de fato ele viveu com aquilo que foi ficcionalizado nos livros. Tal e qual um dia me faltou um guia seguro de onde “encontrá-lo” por Blanes.
Ironicamente, talvez a possível biografia definitiva, que reconstrua seu 11 de setembro de 1973, e o PDF com o guia da sua rota pelo balneário catalão, não ajudem a ler o mais importante, a sua obra. Uma obra que tem na incerteza, na quebra da hierarquia do que devemos lembrar e precisamos esquecer e no desaparecimento súbito como algumas das suas principais marcas. Em determinado momento, no romance “Estrela distante” (1996), o narrador se pergunta “como seguir alguém que não se mexe?”, para se referir aos criminosos da ditadura que sumiram com o passar dos anos ou apenas foram apagados pelo trauma na memória das suas vítimas, muitas delas também já aniquiladas.
Esse mesmo questionamento é ecoado na epígrafe do livro, no verso, também em formato de pergunta, “Qual estrela cai sem que ninguém a veja?”, retirado de um texto de William Faulkner (1897-1962). Sabemos que os horrores da ditadura ocorreram, que os criminosos podem estar ainda ali do lado, mas como apontar a culpa e encerrar o caso em definitivo, se o trauma colocou um manto por cima da memória e tudo parece embolado? Penso nessa chave para ler Bolaño e recordo uma leitura que o escritor Ricardo Piglia (1941-2017) fez de “O processo”, de Franz Kafka (1883-1924), em que o culpado da perseguição policial não seria o protagonista Josef K., ou alguém que o teria feito uma denúncia falsa. O culpado seria a própria memória do personagem, que “apagou” o que seria o principal da história, lançando a todos nós (leitores e personagens) numa trama de superfície nonsense.
Com o golpe de 1973, Bolaño parece querer dizer que um novo mundo também se iniciou. Um mundo em que todos os envolvidos estariam lançados numa espécie de maldição, marcada por uma violência, a “verdadeira violência”, da qual “não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina na década de cinquenta, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende” (como aponta numa passagem do conto “O olho Silva”).
Assim como o personagem andarilho Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1947-1616), Bolaño saiu do Chile e não conseguiu mais reconhecer o mundo sem o seu “trauma de formação”, sem o seu recalque que reapareceu sob uma nova máscara, com menor ou maior intensidade, a cada novo livro. A descrição da tomada do Palácio de la Moneda, no seu romance “Noturno do Chile” (2000), resume a tragédia histórica em pouquíssimas linhas. E a reconta com elipses e um tom brusco, que arrisco a comparar com as primeiras cenas do “Gênesis” bíblico, por sua precisa contenção em narrar o começo de uma nova era: “(…) veio o golpe de Estado, o levante, o pronunciamento militar, bombardearam La Moneda, e, quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou. Então eu fiquei quieto, com um dedo na página que estava lendo, e pensei: que paz. Levantei, fui à janela: que silêncio. O céu estava azul, um azul profundo e limpo, marcado aqui e ali por algumas nuvens. Ao longe vi um helicóptero. Sem fechar a janela, ajoelhei e rezei pelo Chile, por todos os chilenos, pelos mortos e pelos vivos”.
Se o problema da memória é uma das chaves de interpretação que lancei mão até agora para entender a centralidade da obra de Roberto Bolaño na literatura contemporânea, recorro aqui também a outra chave possível. Uma chave que volta a designar a sina de quem (repito!) se acredita subversivo, clandestino ou simplesmente um fugitivo. Trata-se da recorrência de personagens que entram e somem das histórias, sem maiores explicações. São os desaparecidos como protagonistas, que encontramos em algumas de suas principais obras, como “Estrela distante”, “2666” (2004) e “Os detetives selvagens”. Voltamos aqui à pergunta: “Qual estrela cai sem que ninguém a veja?”.
A reescrita de uma busca
É justamente essa chave que o escritor senegalês, radicado na França, Mohamed Mbougar Sarr utiliza no premiado best-seller “A mais recôndita memória dos homens” (recentemente lançado no Brasil pela Editora Fósforo), que fez dele o primeiro autor da África subsaariana a vencer o Prêmio Goncourt. O livro parece reescrever a busca pela misteriosa escritora mexicana Cesárea Tinajero, que marca “Os detetives selvagens”, e lembrada já na epígrafe da obra de Sarr, retirada de um trecho do romance do chileno.
Sarr narra a procura desenfreada de um jovem escritor senegalês por T.C. Elimane, que desapareceu após a publicação do seu romance “O labirinto do inumano”. Um livro que tem influenciado de forma radical a nova geração de autores africanos. Porém, sua potência reside mais em sua aura de mistério, do que numa concreta leitura compartilhada. Da mesma forma que não se sabe o paradeiro de Elimane, poucos também têm ideia da trama de “O labirinto do inumano”. Raros são aqueles que de fato tiveram o livro em mãos. E quem conseguiu, parece ter recebido junto uma espécie de sina maldita. É a literatura como uma aventura de investigação radical. Mas agora os detetives são escritores, que compactuam um passado comum de violência, da verdadeira violência, oriunda das ditaduras, do processo brutal vivido pelas nações colonizadas e por suas modernizações precárias.
A procura de Sarr por Elimane me leva a recordar uma certa passagem de “Os detetives selvagens”, perdida na primeira parte do romance de Bolaño, e que retrata a existência de algo fantasmagórico sempre a rondar. Uma passagem em que o narrador se aproxima da janela de casa para averiguar uma estranha movimentação ouvida na rua à sua frente. Ele confere se há algo ou alguém lá fora. Mas não percebendo coisa alguma de diferente, logo dá as costas e vai se ocupar de outro assunto e “sem saber por que tinha se aproximado da janela, sem saber o que esperava encontrar e que justo nesse momento, quando já não havia ninguém na janela e só piscava uma lamparina de vidros coloridos no fundo do quarto, aparecia”.
De volta ao Chile
Comecei esse texto por uma viagem à Catalunha, mas irei terminá-lo falando do Chile. É que preciso pontuar duas passagens em especial. Roberto Bolaño retornou a Santiago apenas em novembro de 1998, como jurado de um concurso de contos, organizado pela revista Paula. À época, já era um escritor de fama ascendente, com a publicação recente de “Os detetives selvagens”. Suas impressões de retorno saíram na imprensa chilena e depois foram reunidas na coletânea de discursos e artigos críticos “Entre parêntesis” (2004), publicada postumamente e ainda inédita no Brasil. Em determinado momento, lemos: “Foram vinte dias no Chile que estremeceram o mundo (mental) em que habito. Foram vinte dias que pareceram vinte sessões de humanidade despencando. Vinte dias para chorar e rir aos gritos”.
E por fim, quando de sua morte naquele 15 de julho de 2003, o poeta chileno Nicanor Parra (1914-2018) escreveu a seguinte despedida: “Boa noite meu doce príncipe Hamlet. Perda irreparável para o Chile. Perda irreparável para mim. Perda irreparável para todos nós”. E completou: “Devemos um fígado para Roberto Bolaño”. Vinte anos depois, continuamos com a dívida aberta.
Leituras recomendadas
Para começar:
“Estrela distante”
(Tradução de Bernardo Ajzenberg, Companhia das Letras, 2009):
A novela de 1996 é a reescritura expandida de um dos contos de “A literatura nazista na América”, lançado no mesmo ano, que propõe uma espécie de bestiário a descrever a relação de escritores com o chamado “mal absoluto”, ou seja, com a extrema direita. Em “Estrela distante”, encontramos os temas que marcariam a seguir os textos mais famosos de Roberto Bolaño: os escritores que desaparecem, os agentes duplos da repressão e o problema central da memória a assombrar as vítimas das ditaduras, tanto no Chile quanto no restante da América Latina.
O essencial:
“Os detetives selvagens”
(Tradução de Eduardo Brandão, Companhia das Letras, 2006)
Sempre fico na dúvida entre “Os detetives selvagens” e o póstumo “2666”, já que a busca desesperada por escritores misteriosos, em meio a um cenário de violência brutal, marque ambos os livros. No entanto, a figura mítica da escritora Cesárea Tinajero, desaparecida no deserto, e as desventuras dos detetives-poetas Ulisses Lima e Arturo Belano permanecem como irremediáveis para entender o legado do escritor chileno. E temos aqui também o célebre parágrafo de abertura, que empurra o leitor sem air bag num universo onde dificilmente irá escapar: “2 de novembro. Fui cordialmente convidado a fazer parte do realismo visceral. Claro que aceitei. Não houve cerimônia de iniciação. Melhor assim”.
O que vem por aí:
“O gaúcho insofrível”
(Companhia das Letras)
“Toda a orfandade do mundo” (Relicário)
Dois lançamentos marcam, no Brasil, esse 2023 de efemérides bolañianas. Em novembro, a Companhia das Letras publica “O gaúcho insofrível” (lançado originalmente em 2003), que reúne cinco contos e duas conferências. Destaque para a transcrição do discurso ‘Literatura + doença = doença’, em que o autor relaciona (com sua ironia ferina) seus problemas de saúde aos também enfrentados por grandes nomes da literatura, como Franz Kafka. Já a Editora Relicário lança, entre outubro e novembro, uma nova edição do esgotado “Toda a orfandade do mundo” (publicado originalmente em 2016), reunião pioneira no Brasil de ensaios sobre a obra de Roberto Bolaño, organizada por Antonio Marcos Pereira e Gustavo Silveira Ribeiro.
* Schneider Carpeggiani é jornalista, doutor em teoria literária pela UFPE e curador