O reencontro, uma viagem impossível a amantes viciados na intensa partilha erótica de gozos e amores, se torna vivível na lírica poética. “No cinzel dos beijos”, de palavras trocadas pela língua e na língua, o impulso em direção ao outro se realiza no poema, espaço da nítida memória das sensações e profunda experiência de afeto. O silêncio da ausência, abre espaço ao delírio que incendeia, e, longe de caminhar em direção ao fim, se refaz em recomeço, no tempo da poesia.
“toda a nossa candura
pronomes egressos
de sonhos escabrosos
posso sentir ainda
não por ser supremo
mas por ser o real
no céu devastado
fogo com fogo
olha como são
lançados nossos
corpos na estrada
nossos beijos
da boca ao nada
como posso saber
o que nos espera no fundo
caminhando em direção nenhuma
se o que não tem fim
já começou realmente (...).”
O intenso e eletrizante encontro de corpos “sôfregos”, que trocam verdades numa dimensão descarnada, abstrata, emerge em cadência ritmada na inédita obra poética “as palavras trocadas” de Laura Erber. O livro inaugura a coleção Arco, voltada à ficção brasileira (prosa e poesia), da Editora Âyiné, que há cinco anos dedica-se a autores estrangeiros. O lançamento em Belo Horizonte, com noite de autógrafos, será neste 21 de julho, às 19h30, na Livraria Quixote, com a participação da pesquisadora Carolina Anglada e do violinista Paulo Sérgio Thomaz.
“Dois tempos” é o poema seminal, em que a autora Laura Erber reconhece a experiência em torno da qual gravita a obra: apartados estão os corpos do homem, - “quieto agora” - e da mulher, “vazada em formas, que também se arrasta”, num aprendizado “tresloucado de si”, “insistentes na travessia terrestre de prazeres inventados”. Apesar do improvável reencontro de corpos, que por circunstâncias incertas, assim, separados, aqui chegaram, o poema marca a incandescente paixão, e permanente urgência: “na minha boca te consagro outro princípio, líquidos e fantasmas conseguem atravessar muitas coisas”.
Na complexa fusão de dores e êxtases, na palavra escrita, as cenas ganham cores e se eternizam no espaço-tempo: “Vem, diz ela, e ele vem, simplesmente, com a luz da lua inteira, pois sobreviver é questão de saber beber da fonte de água corrente, deixar o vento rejuntar os restos, estar perto na presença dos gemidos e recolher o que brota quente do corpo langoroso.” O poema segue, na permanente trilha de um novo começo. “As coisas não terminam no fim, não terminam quando acabam. O poema está sempre em direção, não ao fim, mas do começo. São esses paradoxos que a língua do poema consegue capturar”, diz Laura Erber.
Escritora, editora e artista visual, nascida no Rio de Janeiro, Laura Erber coordena o programa de pós-doutorado do International Institute for Asian Studies, IIAS, na Holanda, onde, assim como no Brasil, também vive e trabalha. Publicou os livros de poemas “Os corpos e os dias” (Editora de Cultura, 2008); “A retornada”, (Relicário, 2016); “Mesa de inspecção do açúcar e tabaco” (não edições, 2018), o romance “Esquilos de Pavlov” (Alfaguara, 2013), além de diversas obras infantis. Traduziu, em parceria com Sergio Flaksman, “Falas curtas” (Relicário, 2022), de Anne Carson e “A beleza do gesto técnico na pré-história” (Zazie Edições, 2021), de Sophie A. de Beaune. Já realizou exposições na Fundação Miró, em Barcelona, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Skive Ny Kunstmuseum, na Dinamarca. É fundadora da Zazie Edições que co-dirige com Maria de Andrade. Leia, a seguir, a entrevista do Pensar com a autora:
Como a escrita poética interage com o seu contexto de vida profissional?
A escrita de poesias é central para mim, é, no fundo, o entorno do qual organizo a minha vida profissional, mas não é a minha prática cotidiana, que ocupa a maior parte do meu tempo. Meu trabalho envolve várias formas de escrita - das mais burocráticas às mais inventivas -, mas também formas de comunicação, sou coordenadora de um programa de pós-doutorado na Holanda, sou professora visitante da Universidade Católica Portuguesa e na UFMG. Estou sempre lidando com a linguagem, a textualidade. Mas fui estruturando a minha vida profissional de forma que houvesse sempre um lugar para a escrita da poesia. A poesia não é uma prática em que você tem controle do tempo da escrita, ela é menos previsível, não é sistemática, mas está sempre presente e sempre pode acontecer. O importante é estar em estado de atenção, que ela possa emergir.
Qual foi o tempo de escrita de “as palavras trocadas” e qual foi a inspiração para a obra, foi uma experiência biográfica?
O tempo de escrita foi intermitente, mas acho que ao todo foram dois anos, escrevendo, abandonando alguns poemas, reescrevendo outros. A inspiração vem de trocas intensas de palavras, ancoradas numa experiência de troca amorosa, mas também de ausência. O posfácio do Marcos Siscar fala sobre isso: esse jogo de desencontros temporais, mas um encontro num outro nível, de uma língua comum, ou de uma língua que se incendeia, que uma eletriza a outra. O encontro de que fala o livro é nessa outra dimensão, e tem um desencontro temporal-espacial que vai sendo, vai surgindo, que vai sendo refletido, metabolizado. Acho que a inspiração da poesia lírica é esse próprio impulso em direção ao outro, é isso que mais interessa na poesia, esse momento de possibilidade, de até um extravio do sujeito em direção ao outro, de contato incendiário, de uma língua para outra, a experiência dos apaixonamentos e das relações, onde a palavra não é um instrumento de troca, é onde acontece o encontro. Então a inspiração vem de experiências biográficas e de vida nesse contato, mas depois a poesia é uma reelaboração disso.
No prelúdio, esse “impulso em direção ao outro” que menciona, que inspira a poesia lírica, está presente na afirmação “Os poemas eram todos seus. Agora é o livro de um silêncio”?
É uma dedicatória não nomeada. Existe um outro a quem o livro se dirige e que alimentou a escrita do livro, mas não quis nomear, porque não queria fechar o circuito da leitura do livro como o testemunho de uma experiência biográfica singular única. E há uma tentativa dos poemas de também falar das aberturas, em que outros leitores vão colocar outros. Se eu fizesse isso seria lido por essa clave, e depois seria lido por outras perspectivas. Foi então uma decisão editorial: onde quero colocar a leitora, o leitor? Foi decisão consciente para deixar mais espaço para que as leitoras e leitores encontrarem as suas entradas e saídas.
Como temáticas existenciais, como a finitude, são exploradas em sua poesia lírica, que não é erótica, mas que interage e orbita o campo do erotismo e de intensas trocas amorosas?
A poesia lírica como a possibilidade do extravio, do se perder, aborda questões existenciais, que são questões onde existe uma espécie de delírio pronominal, que é o que me interessa, e vai até na contramão de uma tendência contemporânea de usar a linguagem para se afirmar o lugar de onde se fala ou a identidade de um sujeito. A poesia lírica é um contraponto a isso, porque é um lugar em que não há estabilidade dos sujeitos e nem é isso o que se busca. O que se busca é um pouco o contrário, uma espécie de delírio. E há sim, uma questão existencial que é de finitude, inclusive na própria forma dos planos que começam com essa prosa respiratória, tem uma cadência que se experimenta ao longo da leitura e depois os poemas vão se tornando de uma espécie de conversa em prosa para o verso, da conversa ao verso. E gosto dessa forma do livro, em que aquelas massas de texto inicial vão dando lugar a uma coisa mais vazada, mais silêncios, acho até que uma resignação que vai aparecendo, de uma ansiedade inicial para uma experiência mais silenciosa.
A amplitude da poesia lírica, em contraposição ao identitarismo, encontra mais dificuldade de comunicação em decorrência desta tendência de se falar para públicos específicos?
Talvez pelo contrário, a poesia lírica seja cada vez mais necessária e importante, como contraponto a esse discurso social. Aqui estamos falando de uma busca de uma radicalidade da intimidade, que é o contrário desse lugar da politização pronominal dos lugares de contato entre o eu e o outro no discurso. A política da poesia é outra. A poesia lírica, dentro dessa busca, de ser um lugar de arrebatamentos e assombros, arroubos são possíveis, fala de um deslocamento da própria língua. Então não é um lugar de afirmação de orgulho ou de empoderamento das políticas. É o lugar em que a perda de si, a perda do lugar de fala, o silêncio, são fundamentais. A poesia ouve os silêncios, é o lugar de preservar as outras línguas da língua, até línguas não sociais, até as línguas antissociais, que são radicalmente egoístas (não egocêntricas) no sentido de que é uma partilha muito específica, não é partilha da distribuição dos lugares políticos. Quando eu comecei a publicar poesia lírica nos anos 2000 não havia espaço acolhedor, a poesia naquele momento era cada vez mais impessoal, havia uma necessidade dentro da tradição modernista de expurgar do poema tudo o que tivesse a ver com uma subjetividade. Mas existia ao mesmo tempo, nessa época, com a questão da subjetividade como experimento de radicalização, desse lugar do eu, que é mais de endereçamento da fala. A poesia está mais interessada para onde as palavras se encaminham do que com a origem, do lugar de onde partem. Então é esse tipo de força, atração, em que as palavras vão sendo puxadas por um outro que pode ser um nada, a morte, um alguém.
“Vem comigo ver o opala da noite o ano inteiro a vida inteira”. Os versos do último poema, “Futurologia”, podem ser entendidos como um convite ao leitor para o prazer dessa viagem à poesia lírica?
Acho que o tempo inteiro há esse convite, essa experiência de carnação das palavras. Conter a crueldade do tempo que não para e que vai tornando cada vez mais impossível o encontro. O livro inteiro é ultralírico, mas vai se encaminhando para esse lugar em que o tempo inteiro é uma lírica dialogando com o campo do erotismo, sem ser um livro de poesia erótica, mas ter passado por essa questão da carnação, da palavra encarnada, das encarnações e desencarnações. Essa é a tentativa de fazer com que a linguagem seja o lugar de encarnação, contra essa finitude. O que se pode colocar contra? Acho que é conseguir estabelecer com a palavra uma relação física, encontrar na palavra uma satisfação física, de gozo, de desejo, de prazer onde aquilo substitui, mas gera prazer entre o encarnado e o desencarnado. É tudo um convite, porque o leitor é colocado nesse lugar, por isso não quis dedicar nomes, para que o leitor possa se colocar em vários lugares, do outro, para quem os poemas vão se endereçando e os poemas vão conversando, não é estável.
Como o jogo e a estratégia estão presentes nessa experiência do erotismo desta troca amorosa intensa?
O jogo é uma palavra boa para se referir a esse vaivém das próprias palavras, pois o livro fala também de que numa troca amorosa, a gente vai adquirindo as palavras do outro e o outro também. Existe uma transfusão de línguas, e, para além do beijo, existe uma transfusão da língua. Essa transfusão é fundamental. É sobre isso, as palavras trocadas são sobre essa transfusão de línguas e de sensação de afeto e de prazer na linguagem, da língua do poema como é o lugar em que rememora o prazer e de novo produz um outro componente de prazer ou deixa que aquilo que se torne uma espécie de instrução para um leitor futuro. Mas acho que a ideia da transfusão é forte, a ideia do jogo, que tem a ver com isso, não é uma troca inocente, não há ingenuidade nem em relação à relação com o outro, nem em relação à linguagem nem às formas de contato. Então jogo pode ser palavra boa, porque pode ter algo de uma certa estratégia. Um jogo que teria uma questão de tradução do prazer da troca amorosa em todos os sentidos: troca de fluídos, troca de palavras, de afetos, de sensações. Tem uma questão de como traduz uma troca. Então esse era um desafio. Mas o poema pode ser também um lugar de transfusão, mas que também traduz essa experiência, mas não simplesmente também um lugar de chegada, que pode propor essa experiência a outro leitor ou leitora. Então não é uma entrega inocente, ingênua, tem um lugar tático.
“as palavras trocadas”
- De Laura Erber.
- Projeto gráfico de Federico Barbon.
- Coleção Arco. Editora Âyiné.
- 62 páginas.
- R$56,90
- Lançamento nesta sexta-feira (21/07), às 19h30, na Livraria Quixote (Savassi).