Teodoro Rennó Assunção *
Especial para o EM
Prefiro começar esta breve resenha crítica delineando a composição do texto de “Cabaré Coragem” como uma colagem de citações e apropriações livres fragmentadas (mas também com várias atualizações e inserções externas de textos e canções que não são de Brecht, às vezes acompanhados de números de acrobacias ou de coreografia) sobretudo das peças musicais ou operetas de Brecht com Kurt Weil (“A ópera dos três vinténs” e “A ascensão e queda da cidade de Mahagonny”), mas também com a apropriação da personagem de “Mãe Coragem” da peça de Brecht “Mãe Coragem e seus filhos,” assim como das máximas e fábulas paradoxais do Sr. Keuner (reunidas no livro “Histórias do Sr. Keuner”).
A impressão é a de que aquilo que é representado no palco (ou narrado dramaticamente) é não exatamente uma história única (com seus antecedentes, episódios sequenciados e desfecho) e com personagens bem desenvolvidos, mas a de uma sucessão de quadros musicais ou de breves recitais de frases ou piadas que têm uma relativa autonomia e visam a uma explicitação cômico-crítica da miséria e injustiça da atual sociedade brasileira, regida por uma lógica básica cruel que continua a ser a do capitalismo contemporâneo (com suas guerras, violências e concentração crescente da riqueza na mão de poucos), e a uma tomada de posição mais firme contra a exploração (semelhante à do grupo de atores/cantores do “Cabaré Coragem” contra a Mãe Coragem que os explora, mas que por sua vez seria explorada pelos verdadeiramente ricos, algo que a fábula dos peixinhos e dos tubarões sugere com clareza). Tal como resumidamente acabamos de o descrever, é já evidente que a perspectiva engajada do teatro de Brecht (também retomada nesta miscelânea musical do Galpão) é marxista, mas, no entanto, não a de um marxismo fácil e de cartilha, e sim o de uma sempre contundente e bem-humorada reinvenção dialética do marxismo.
E se nos perguntássemos pela autoria do texto e do roteiro da peça – que, como vimos, é apenas uma mistura musical livre de vários fragmentos de Brecht com outros elementos variados não encontráveis em suas peças –, não poderíamos indicar um nome individual, mesmo que a direção seja de Júlio Maciel e conte com a supervisão dramatúrgica de Vinícius de Souza, pois esta autoria (como já aconteceu também com outras peças recentes do Galpão) é coletiva, envolvendo os atores da peça (além dos que exercem direções e supervisão) e resultando de uma espécie de laboratório experimental prévio inspirado primeiramente pela leitura e apropriações de Brecht, mas contando também com a invenção de breves cenas ou quadros musicais próprios a um cabaré brasileiro mais escrachado e decadente.
Mas seria preciso observar também, como um dado sensível desde o início, a mistura, na parte em frente ao palco com suas mesas como as de um cabaré (sendo que um “bar” externo à sala de espetáculos continua aberto e vendendo bebidas no começo do espetáculo e durante o intervalo), entre os atores e os espectadores que são às vezes interrogados por aqueles e participam da peça tanto com suas respostas individuais quanto com seus aplausos e vozes acompanhando as canções. Mas, ainda assim, fisicamente um palco continua a existir (não sendo ocupado por nenhum espectador durante a peça) e os atores se distinguem tanto por seu vestuário mais extravagante quanto por posturas mais dinâmicas (às vezes coreográficas) do que as dos espectadores que estão apenas sentados. Os atores (que, no intervalo, também se aproximam e se dirigem diretamente à plateia em pontos mais afastados do palco) às vezes conversam diretamente com o público (num procedimento já presente na parábase do teatro grego, no prólogo e no epílogo do teatro elizabetano ou na Comedia dell’Arte), como se indicando ou revelando explicitamente por sua atitude (e às vezes também pelo conteúdo do que dizem) que toda esta experiência não passa de um teatro (como já o antecipa a primeira canção: “Teatro, no fundo és puro teatro,/ falsidade ensaiada,/ estudado simulacro”), no qual o público não deve imergir de todo, justamente para – bem consciente do fenômeno mesmo da representação – poder pensar melhor sobre o que está sendo representado.
E assim como o público deve perceber bem não só a personagem representada pelo ator, mas também o próprio ato da representação teatral, distanciando-se da personagem, ele (o público) deve também se distanciar de uma identificação ou empatia direta com a personagem (ou herói trágico/cômico) para perceber melhor a sua fragilidade e miséria socialmente determinadas e o quanto elas poderiam ser modificadas por uma ação política esclarecida. O próprio Brecht (que conheceu pessoalmente e foi inspirado nisso pelo russo Meyerhold) chamou, em suas teorizações, este efeito de “estranhamento” ou “distanciamento” (Verfremdung), reconhecendo nele uma virtude eminentemente didática e política, e denominou este tipo de teatro narrativo como “épico”. Esta virtude didática e política – a partir da extrapolação do espetáculo teatral para o que chamamos de “realidade” (com sua básica dimensão social) – foi muito bem descrita assim por Roberto Schwarz: “Ao sublinhar a parte do fingimento na conduta teatral, a parte da coisa feita, Brecht quer ensinar que também as condutas da vida comum têm algo de representação, ou por outra, que também fora do teatro os papéis e a peça poderiam ser diferentes. Trata-se de entender (...) que na realidade como no teatro os funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis.” (“Altos e baixos da atualidade de Brecht” no livro “Sequências brasileiras”).
As aparências enganam
A produção deste efeito de estranhamento no público (tanto no que se refere à própria representação teatral quanto à opressiva realidade ordinária em que ele também se encontraria) é já bem-marcada pela primeira grande fala de Singapura (Inês Peixoto) diretamente para o público, com uma ênfase final na importância da ação política: “Mas mantenham os olhos sempre abertos. As aparências enganam, senhores e senhoras! Desconfiem de tudo que parece estático demais e analisem sobretudo aquilo que parece habitual. Nada é impossível de mudar!” No entanto, logo depois, a personagem se torna reflexiva e auto-irônica, com um toque de escracho ao adotar latino-americanamente o espanhol, ainda que lembrando também da sua miséria presente: “Ay, estoy política, estoy confusa, estoy tantas cosas… Tengo hambre! Fome!”. E, como uma espécie de enquadramento para o conjunto da peça, uma fala muito parecida de Singapura (Inês Peixoto) para o público, com uma advertência dialética sobre o caráter ilusório das aparências e a fundamental instabilidade das coisas (e uma frase final que ecoa algo de Guimarães Rosa), conclui a peça (abrindo-se para uma “realidade” que desafiadoramente continua após o seu término): “Mas mantenham os olhos bem abertos. As aparências enganam, senhoras e senhores! O que é seguro não é seguro e assim como está não permanece. Nada es lo que parece. E não se esqueçam que viver neste mundo é sempre muito perigoso!”
Mas é preciso indicar, além disso, o quanto é importante também neste teatro engajado e político (e, a seu modo, reflexivo e filosófico) o prazer ou o divertimento (tanto para a plateia quanto para os próprios atores) que vem de um espetáculo musical ao vivo (aqui com arranjos e trilha sonora de Luiz Rocha, que também é um dos atores), uma vez que os atores do Galpão – segundo uma tradição que vem de longa data – se tornam também instrumentistas e bons cantores e eventualmente bons dançarinos, dando ao conjunto da peça um ritmo bem mais leve do que aquele que seria composto apenas por diálogos entre as personagens. Pois, como diz o próprio Brecht em uma das “Indicações para os atores” cujo título é “Ser agradável” (usando no texto mesmo do aforisma o singular): “Ele [o ator] deve representar tudo com prazer, especialmente o horrível, e mostrar o prazer que tira disso. Quem não ensina divertindo e não diverte ensinando não tem nada o que fazer no teatro.” (No livro “Sobre a profissão do ator”).
Darei agora dois exemplos ou desdobramentos (que se destacam no conjunto da peça) do que acabou de ser sugerido no parágrafo anterior sobre o espetáculo prazeroso: 1) as acrobacias e malabarismos incrivelmente ágeis e eficazes de Eduardo (Moreira) e Toninho (Antônio Édson) e 2) a conversa muito bem representada do Ventríloquo (Eduardo Moreira) com a Bonequinha (Inês Peixoto). No caso das acrobacias e malabarismos ágeis com objetos de Toninho com o suporte perfeito de Eduardo, nós teríamos um ou dois números que fazem parte de uma tradição maior do music-hall, e que poderiam ser interpretados como uma apresentação cênica do próprio trabalho em ato, sugerindo não só a sua condição de atores pagos para supostamente desempenhar bem os seus papéis (confirmando a fala irônica e jocosa da Bonequinha quando diz: “adorável público pagante”), mas também – e de maneira mais explícita do que no caso de meras falas de personagens, já que eles representam assim o papel dos ginastas que eles devem na própria realidade exatamente ser ou executar – a terrível possibilidade ao vivo do erro (ou fracasso).
No caso do Ventríloquo e da Bonequinha, um número típico de circo e/ou de espetáculo para crianças, apesar de a Bonequinha ser representada por uma atriz (Inês Peixoto), o Ventríloquo (representado por Eduardo Moreira) imita os movimentos de boca típicos de um Ventríloquo quando o seu ou a sua boneca/o fala por meio dele, representando assim a cena que poderia ser vista nesse tipo de espetáculo. Mas o que está sendo representado pelo conteúdo do diálogo nesta cena é precisamente a ausência de autonomia ou vida própria da Bonequinha e, portanto, a manipulação (pelo Ventríloquo) das falas dela, até que – a partir da escolha da fábula do Sr. Keuner (escrita por Bertolt Brecht, como é explicitado pelo Ventríloquo) sobre os peixinhos e os tubarões, que é interpretada como a da história humana da luta de classes e da exploração violenta de muitos fracos por poucos fortes – a Bonequinha enfim consegue miraculosamente assumir a autonomia da sua própria fala, enquanto o Ventríloquo começa a perder o controle da dele e a assumir a reivindicação da revolta ou revolução (jocosamente em espanhol, língua majoritária dos “subdesenvolvidos” da América Latina e também da revolução cubana) sugerida pela Bonequinha.
Mas a liberdade quase transgressiva na composição desta peça está presente também na utilização de canções brasileiras muito conhecidas e melodramáticas como “Coração materno” de Vicente Celestino ou “Perigosa” de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Nelson Motta (que se tornou famosa na interpretação das Frenéticas), cujo exagero meio brega, bem apropriado a um cabaré meio fuleiro, torna possível uma maior e mais imediata aproximação com o público. E (o que é mais decisivo) o que poderia ser chamado de uma “atualização”, na qual o público reconhecerá sem dificuldade o seu mundo contemporâneo (algo característico do “teatro épico” de Brecht), está presente também de modo bem marcado em referências travestidas, mas facilmente reconhecíveis, a figuras contemporâneas que se alinharam à extrema-direita no nefasto governo do último presidente do Brasil como uma excelente atriz de cinema e TV que, primeiro nomeada como “Margarida”, é transformada pela hipnose de Fantasus e pela “imbecilidade das redes sociais” em “Patrícia Kiss”, uma “mulher monstro das famílias de bem”, apresentando “um comportamento irascível” e tornando-se “intolerante e agressiva”. Mas o modo como o seu comportamento é então descrito irá também aludir a um episódio de corrupção conhecido e bem recente envolvendo a também anticomunista ex-primeira-dama (o que causa um grande impacto cômico, mas também de indignação, sobre o público): “Nesses momentos de crise, o único dispositivo capaz de acalmá-la são joias e colares de pedras preciosas. Ela não suporta a palavra arte, tem horror ao cheiro dos pobres, e apresenta uma estranha ojeriza a toda e qualquer tonalidade da cor vermelha.”
Ora, estas duas referências facilmente reconhecíveis a duas mulheres midiáticas (assimiladas aqui ficcionalmente em uma única) de extrema-direita e totalmente alinhadas ao destruidor ex-presidente brasileiro indicam inequivocamente o alvo primeiro da crítica política de “Cabaré Coragem”. Poderíamos, no entanto, verossimilmente suspeitar de que esta crítica política seria desnecessária para um público já bem consciente dos horrores do último governo brasileiro. Mas como a terrível ameaça hoje global de retorno da extrema-direita (tendo em vista os governos mais ou menos recentes de Boris Johnson, Donald Trump, Benjamin Netanyahu, Viktor Orbán e Jair Bolsonaro) continua bem presente, o que poderia parecer uma mera evidência para o público entusiasmado que lotava o Galpão Cine Horto não deixa de ser um oportuno convite (mesmo que jamais formulado assim explicitamente) a uma ação política mais efetiva e empenhada para a manutenção ao menos do atual governo federal brasileiro. E, concluindo, talvez convenha frisar que não existe em todo o musical “Cabaré Coragem” do Galpão nenhuma proposta política explícita para o presente e o futuro imediato do Brasil, o que permite evitar qualquer panfletarismo grosseiro, pois o foco está sempre na crítica social e política – que a seu modo também é “de costumes” e se coaduna perfeita e tradicionalmente com o gênero cômico – e no conhecimento e prazer que podem advir daí.
* Teodoro Rennó Assunção é professor associado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)