Jornal Estado de Minas

AS EDITORAS DAS EDITORAS

Silvia Nastari: a artesã de livros

 

Enquanto revirava algumas caixas e pertences dos pais, que perdeu durante a pandemia, a editora Silvia Nastari, 42 anos, tomou um susto: encontrou, guardado em uma caixa, um livrinho artesanal que fez de presente para a mãe, quando tinha apenas cinco anos. Foi uma espécie de comprovação premonitória da sua vocação, avalia ela, que hoje, junto do sócio e marido Bruno Zeni, comanda a Quelônio, que tem se destacado no cenário literário nacional com uma produção cuidadosa e artesanal de livros, feitos com técnicas tradicionais de impressão, como linotipia, tipografia, carimbos e serigrafia, além de costuras à mão. 





 

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A aventura da editora começou em 2013, quando Silvia compilou alguns poemas de Zeni , que recebeu enquanto namoravam. Encantada pelo livro como objeto físico desde criança, ela resolveu editá-los e transformá-los em um pequeno volume artesanal. Pensou no título – “Você é minha notícia secreta” –, garimpou um clichê antigo no Brás, bairro de São Paulo conhecido por abrigar gráficas, para imprimir a capa, e costurou o exemplar à mão. Com essa primeira publicação, surgia o embrião da Quelônio, batizada a partir do livro “Histórias de cronópios e de famas”, de Julio Cortázar. 

 

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A partir desse primeiro lançamento, a ideia de ter uma editora com técnicas de impressão tradicionais se fortaleceu. Graduada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), ela já havia trabalhado com editoras de livros e revistas, quando decidiu estudar design, área em que tem mestrado, também pela USP. Na Quelônio, ela uniu as duas áreas. “Nos primeiros anos, constituímos um catálogo bem diversificado, com fotolivros, livros-objetos, plaquetes e formatos mais inusitados”, detalha Silvia. “Aos poucos, fomos consolidando o projeto editorial com a intenção de abrir espaço para escritores iniciantes, para a poesia brasileira contemporânea, para a literatura feita por mulheres”, completa. Hoje, o catálogo da editora já conta com mais de 100 livros, todos em edições caprichadas e cuidadosas. 

 

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A seleção é feita tanto por convites diretos aos autores quanto pelo envio de originais. “O que importa na seleção do original é a qualidade literária. Não há restrição quanto ao gênero, mas sim se ele se encaixa nas diretrizes gráficas e literárias da editora”. É o texto que direciona qual a técnica de impressão vai ser usada no produto final. “É impossível para mim antecipar como será o livro, o formato, o estilo das letras, sem antes compreender o texto literário”, detalha Silvia. Ela faz questão de sempre conversar com os autores e propor uma interferência positiva nos trabalhos. “É sempre um processo coletivo, que envolve todos que participam da feitura do livro”, detalha. Cada técnica decidida direciona e, ao mesmo tempo, limita a criação das obras. 





 

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“Os livros em que temos mais experimentações gráficas são livros curtos, com uma quantidade menor de texto, o que favorece o gênero da poesia. Muitos autores acabam nos procurando para publicar um livro específico, mais experimental, que não se encaixaria num catálogo de uma grande editora, onde tudo é mais padronizado”, avalia. 

 

Em 2017, a gráfica onde Silvia imprimia parte dos livros decidiu encerrar as atividades, já que os talões de notas fiscais – principal produto deles – passaram a ser digitais. Ela não titubeou: comprou as máquinas, incluindo um linotipo. O equipamento, que usa chumbo derretido para fundir linhas de letras, é um dos últimos em funcionamento no Brasil – e, provavelmente, no mundo. Junto, vieram também o linotipista e o impressor. “Foi uma maneira de usar a técnica da tipografia nos livros e manter vivo este ofício, com profissionais tão capacitados e já sem muito espaço para atuação. Trouxemos toda uma gráfica para nossa casa”, conta. 

 

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Para abrigar o maquinário, uma área de lazer nos fundos da casa da família em São Paulo foi transformada em galpão. “Começamos a fazer os lançamentos dos livros aqui, abrir a tipografia para visitação. O fato de fazermos de tudo um pouco na editora facilita estarmos sempre aqui. Mas não deixa de ser um conflito pessoal, temos filhos pequenos e eles já se acostumaram em viver na editora, na gráfica”, conta Silvia, que é mãe de duas crianças. “A minha filha sempre quis participar dos eventos da editora. Recentemente, ofereci um curso de tipografia para crianças. Foi o maior barato, é muito legal ver uma nova geração encantada pela produção manual dos livros”, comemora.  

Depoimento / Ana Martins Marques  (autora de “O livro dos jardins”)

O convite para publicar “O livro dos jardins” na Quelônio surgiu por intermédio da poeta Júlia de Carvalho Hansen, que lançou pela editora o livro “Alforria blues”. Eu já conhecia algumas publicações da Quelônio, como esse livro da Júlia e o ótimo “A órbita de King Kong”, do José Luiz Passos. Quando me perguntaram se eu gostaria de publicar alguma coisa pela editora, logo lembrei dessa pequena série de poemas que giravam todos de alguma forma em torno do universo das plantas, das flores ou dos jardins, e pensei que seria apropriado que eles saíssem em tipografia, numa edição artesanal, costurada à mão… Imaginei que o trabalho da Quelônio, uma editora que publica literatura brasileira em edições muito caprichadas, frequentemente utilizando tipografia e outras técnicas tradicionais de impressão e acabamento, combinaria com a ideia de “cuidado”, “cultivo”, que eu associava à imagem do jardim. O trabalho da editora revelou que eu não poderia estar mais certa! O projeto gráfico, assinado pela Silvia Nastari, lembra um pouco um caderno de campo, amarrado por uma linha vermelha. O papel da capa é feito de folhas de bambu verde. Acho muito bonito o fato de o papel, que é bem rústico, deixar ver sua origem vegetal, como um lembrete de que os livros um dia foram árvores. Também me encanta o fato de que cada exemplar do livro seja diferente um do outro. Para a segunda edição, acrescentei quatro poemas novos. Fico feliz de ver o livro crescer, como é próprio dos jardins. 





 

Entrevista / Silvia Nastari (Quelônio)
“Vemos uma grande demanda de autores querendo publicar”

 

Quais os maiores desafios de ser uma editora no Brasil?

O maior desafio para nós é o custo e o alcance do que produzimos. É muito caro fazer um livro. É muito trabalho fazer este livro circular, chegar ao público. No nosso caso de uma editora independente de médio porte, esse custo esbarra também no custo pessoal, numa sobrecarga de trabalho. Vemos uma grande demanda de autores querendo publicar, poucos incentivos e uma cadeia do livro muitas vezes refratária a livros mais delicados ou de gêneros pouco apelativos. Só trabalhamos com ficção e com poesia de autores brasileiros contemporâneos, e o mercado e a imprensa infelizmente continuam a destinar pouco espaço para essa produção.

 

Quais os próximos capítulos de sua editora?

Na Quelônio, tivemos de diminuir a quantidade de lançamentos, pois dependemos muitos dos eventos presenciais, e durante a pandemia ficou inviável. Agora, nesse período de retomada, tivemos que pensar cada vez mais na produção dos livros, encontrar alternativas híbridas para viabilizar as produções mais experimentais, imprimindo parte da publicação em tipografia, carimbo, serigrafia etc e parte em impressoras digitais ou offset. Estamos abrindo novas frentes de trabalho, como os cursos em torno das artes do livro, oficinas e a retomada de edições mais colaborativas, como no nosso curso de plaquetes. Além dos livros, nossa linha de papelaria literária também deve crescer, como uma forma de expandir a literatura para além do livro e preservar esse caminho de pesquisa e atuação com a memória gráfica.  

 

Qual livro ou autor, brasileiro ou estrangeiro, gostaria de ter sido a primeira a editar?

São tantos nomes, com tantas possibilidades gráficas... mas gostaria de fazer uma edição artesanal para “Vidas secas”, do Graciliano Ramos e, claro, seria incrível publicar o Drummond, meu poeta da vida. Mas confesso que já realizei desejos editando “Eu sou a monstra”, de Hilda Hilst, “80 anos”, de Francisco Alvim e “O livro dos jardins”, de Ana Martins Marques. Este ano estou muito feliz e honrada com a possibilidade de publicar um livro de poemas da editora Heloisa Jahn, “Palindroma”, que deve sair em outubro e tem tudo a ver com o catálogo da Quelônio, pois une os poemas da autora e as ilustrações de Carlos de Moraes de uma maneira muito surpreendente, em lâminas soltas, de uma forma ao mesmo tempo livre e intensa, algo que admiramos muito nessa relação entre texto e imagem. Para mim, será a melhor forma de homenagear uma editora que teve uma atuação tão importante para a literatura no Brasil.