Jornal Estado de Minas

PENSAR

Hannah Arendt: edição bilíngue da Relicário traz versos da filósofa alemã

Giovana Proença*
Especial para o EM
 
“Também eu danço” é uma coletânea construída por contrastes. Em especial, entre luz e sombra. A autora dos 71 poemas do conjunto, a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), é consolidada como uma das mais célebres pensadoras do século 20 – tanto pelos admiradores de suas ideias quanto pelos críticos ferrenhos. Não há dúvidas de que o ideal de Arendt é uma filosofia da compreensão, o que se relaciona intimamente com a obscuridade e a iluminação. A lírica completa da alemã está disponível pela primeira vez ao leitor brasileiro, em edição bilíngue da Relicário, com tradução de Daniel Arelli.





A poética de Arendt, entretanto, não pode ser reduzida apenas aos escritos de uma mulher a favor do esclarecimento. É importante apontar que, para a autora, a poesia é “a mais humana e a menos mundana das artes”. Hannah Arendt era uma admiradora confessa do fazer literário, com favoritos que iam de Bertolt Brecht a Rilke. A poesia apresentada em “Também eu danço” é menos próxima dos versos políticos do primeiro – e da produção filosófica e ensaísta da própria Arendt –, e mais íntima da qualidade fundamental da magia, a possibilidade de transformação pela palavra, que reside no cerne da lírica que consagrou Rainer Maria Rilke. 

Arendt escreve no modelo de seus conterrâneos. O cânone da autora, além de Brecht e Rilke, eleva Goethe, Friedrich Schiller e Heinrich Heine. Ela também foi uma profunda leitora dos gregos, o que colaborou para o seu pendor lírico. Contudo, é um conceito italiano, surgido para denominar uma técnica dos artistas do Renascimento, que dá tom aos poemas de Hannah Arendt: o chiaroscuro. 

Traduzido literalmente como “claro-escuro”, o chiaroscuro tem como princípio o contraste – entre luz e sombra. É este mesmo contraste que perpassa a obra poética de Arendt. Lírica bissexta, a pensadora escreveu os primeiros poemas na tenra juventude, entre 1923 e 1926, quando tinha em torno dos dezessete aos vinte e um anos de idade. Depois, há um hiato, rompido em 1942, quando ela escreve a maioria de sua produção até 1961. 





Desde os primeiros versos, o contraste se faz presente. Por meio de sua biografia, supõe-se que o “muso inspirador” da pensadora e também o seu interlocutor ideal seja Martin Heidegger, filósofo e professor mais velho e casado, com quem a jovem Hannah manteve um diálogo intelectual, além de uma forte paixão. Isso tudo, vale lembrar, antes das simpatias de Heidegger pelo nazismo virem à tona, bem como a luta de Arendt, judia, contra os regimes totalitários. 

Luz e sombra se colocam no primeiro poema da coletânea: “Palavra alguma ilumina / Deus nenhum levanta a mão / até onde alcança a vista / vejo terra em vastidão.”. Na estrofe seguinte, Arendt escreve: “Sombra nenhuma se move / forma alguma se desfaz./ E mais uma vez eu ouço:/ é tarde, tarde demais.” A abertura de “Também eu danço” sintetiza o tom da poética de Hannah Arendt, bem como as obsessões que perpassam a obra da autora. 

A existência, mistério por excelência de toda a filosofia – preocupada com as questões do ser –, é uma questão maior dentro destes versos. Momentos em que o pensamento se torna agudo diante da experiência são elevados. “Escorrem as horas /transcorrem os dias. Só resta a presença/ da mera existência”, defende o eu-lírico de Arendt. 





Luz e sombra irrompem nas imagens da pensadora alemã. O crepúsculo é uma dessas figurações, um momento transitório de claridade, assim como o metrô, que “Emerge no escuro / vagueia no claro”. Nos poemas da juventude, há uma ode às sombras, nas quais pode-se encontrar o esclarecimento. Mais do que isso, predomina um ímpeto da juventude. “Crepúsculo vem/ e tudo decai. / Nada me detém / vida que vai”, ela proclama.

Nos poemas da maturidade, a segunda seção do livro, a dicção – por vezes inocente e idealista demais nos primeiros versos – torna-se sólida. A noite e a escuridão são sombras cada vez mais próximas. É importante notar que Arendt foi testemunha e vítima de um dos períodos mais disfóricos da história, marcado pela Segunda Guerra Mundial e pela perseguição aos judeus. 

Nos poemas de Hannah Arendt, não encontramos as tendências modernistas, ou seja, a radicalização da forma poética, que dominava o contexto de produção da autora. Embora haja uma liberdade, com relação aos versos livres, também percebemos uma certa referência à dicção romântica – grande tradição alemã –, e a insistência em rimas (por vezes, pobres). Nesse sentido, o esforço da Relicário por uma edição bilíngue é válido. Até mesmo o leitor leigo em língua alemã pode perceber o esquema formal do original de Arendt. O aparato teórico é mais um acerto da edição, com textos de Daniel Arelli e Irmela von der Lühe. 





É certo que a filosofia de Hannah Arendt norteia a recepção da sua obra poética, sendo a grande sombra que ilumina o conjunto. A coletânea, entretanto, evidencia a percepção lírica da autora sobre o seu momento histórico. Estes não são poemas engajados, mas revelam a intimidade de uma pensadora proeminente: o contraste entre luz e sombra que marcou Arendt. No poema que dá título ao livro, ela escreve: “Eu mesma/ também eu danço. / Irônica e destemida”. Os versos reafirmam a ousadia de uma das únicas mulheres a conquistar relevância no cenário intelectual essencialmente masculino do século 20. 

Giovana Proença é pesquisadora em teoria literária pela Universidade de São Paulo (USP) 

 

Hannah e seus versos


Cansaço
 
Crepúsculo lento -
um leve lamento
canta ainda o melro
que eu reinvento.
Paredes sombrias
enfim vão ao chão
de novo se aliam
minhas duas mãos.
O que eu amava
não posso tocar
e o que me rondava
não posso deixar.
Crepúsculo vem
e tudo decai.




Nada me detém -
vida que vai.



Sonho

Pés flutuando em brilho patético.
Eu mesma,
também eu danço
livre do peso
no escuro, no imenso.
Espaços cerrados de eras passadas
distâncias trilhadas
solidões dissipadas
começam a dançar, a dançar.
Eu mesma,
também eu danço.
Irônica e destemida
de nada esquecida
eu conheço o imenso
eu conheço o peso
eu danço, e danço
em brilho irônico.



À noite

Consoladora, inclina-te em meu peito.
Silenciosa, alivia meu tormento.
Cobre o que cintila com tuas trevas -
Dá-me refúgio contra a luz que cega.




Deixa-me teu silêncio, o laço discreto,
deixa-me ocultar na sombra perverso.
Se a luz com novas faces me atormenta,
dá-me o ímpeto para a ação correta.
 
 
Mas às vezes ele emerge, o mais familiar, abre
os portões da casa e para, eterno ficar em vigília.
Como pendem as pontes, de margem a margem, sobre
Ah, o tempo
se apressa
depressa
ano a ano
e retece
os seus elos.
Ah, e logo
serão alvos
meus cabelos.
Mas quando
o tempo súbito
se reparte
em dia e noite,
quando o coração
demora -
não joga então
com o tempo
a eternidade?
 

“Também eu danço”

Edição bilíngue.
De Hannah Arendt
Tradução e prefácio de Daniel Arelli
Posfácio de Irmela von der Lühe
Relicário Edições.
228 páginas
R$ 63,90