Jornal Estado de Minas

PENSAR

'Pequi noir' de André de Leones tem sucessão de tiros certeiros

Sérgio de Sá
Especial para o EM
 
Goiás é bruto, sô. Assopra e cheira no Centro-Oeste uma violência física e moral que vai tomando conta de ação e pensamento. Nas mais de 500 páginas do romance “Vento de queimada”, o goiano André de Leones nos coloca nesta atmosfera de tensão interna, sob a mira de armas. O ano é 1983. E apenas poucas mortes são gratuitas, quer dizer, não estavam previstas para serem executadas por algum valor pecuniário.





Entre o fim da ditatura e a volta da democracia, o interior do país é terra de sangue derramado, como se no cerrado coubesse outro tipo de cangaço. Mais do que conquista à moda faroeste, já está tudo colonizado por mercenários, por todos os lados, entranhados na política, na polícia, no empresariado, nas forças armadas. Isabel, a protagonista, é matadora por influência do pai policial e por outro motivo ainda mais pessoal, a não ser exposto aqui, para não estragar a leitura. 

Formada em História pela Universidade de Brasília, ela conduz a longa narrativa e suas quebras com referências nos capítulos ao historiador grego Xenofonte: Anábase, Catábase e Parábase. Como a personagem principal reivindica autoria, o percurso passa sempre pelo caminho da morte. Gosto da definição do próprio Leones para o romance: “pequi noir”, com direito a sotaque (noarrrr). O típico regional tomado de forma global, cultura enquadrada por crime.

Chama a atenção o modo natural como o autor frisa o monólogo interior. Repetições intensas (de ideias, constatações, sentimentos) se dão entre parênteses, usados à vontade para afirmar que na memória não se deixa nada para trás (nem mesmo uma frase limpa e elegante) e também para constatar um tipo de violência original e familiar prestes a penetrar a mais comum e corriqueira das linguagens. 





A leitura de “Vento de queimada” corre na velocidade das balas que atravessam cenas e diálogos, sem metáforas. Além de Isabel e o pai (Garcia), a figura do gringo Gordon destaca-se na narrativa como modelo que poderia apresentar alguma saída externa em meio ao desolador cenário do país afundado em lama moral e ética. Talvez estética: louvar a comunicabilidade do best-seller importado e vendido em banca de jornal, assim como a onipresença da atriz pornô norte-americana Kay Parker, fazem parte do jogo paradoxal entre o cult e o kitsch, propício à imaginação literária do autor. 

Do prólogo (“Tártaro”) ao epílogo (“Asfódelos”), a mitologia greco-goiana de “Vento de queimada” organiza-se contemporaneamente como pamonha à moda ou empadão com gueroba: amarga natureza humana. Homens e mulheres – perversos, cruéis e tiranos – têm de enfrentar todas as mortes neste plano terreno, minado e contaminado. Isabel não é capaz nem mesmo de proteger quem ela supostamente quer muito bem. 

A trama de encomenda-morte-vingança ocorre em cidades e estradas entre Goiânia, Silvânia e Brasília, nunca tocando de fato a modernidade brasiliense, tão decomposta pelo poder autoritário quanto o cerrado ao redor. Há rápido desvio programático para São Paulo e Santos, quando Isabel vai à praia, pela primeira vez, enquanto realiza um trabalho que a incomoda mais do que o habitual. Mesmo diante do inusitado litoral, o idílio não está entre nós. O sal da terra é o mesmo do mar. 





A primeira e a terceira pessoas – Isabel e o narrador – cutucam o texto adiante, quando não estamos em diálogos (eles são muitos e muito bons). O autor cola a narrativa nos jeitos do português que se fala em Goiás e arredores. Entre idas e vindas no consciente de Isabel, reverberam uma desesperança que deixa marcas melancólicas no leitor, na leitora. 

André de Leones reforça neste sétimo romance vocação para tirar a poesia da poeira (eliminar qualquer transcendência, e não realçar o sublime), para chegar à decomposição possível. A crueza do texto convida leitores de estômago forte. A extensão permite compreender dimensões históricas da violência brasileira, interligadas a indivíduos e instituições. 

De 1º de abril (Dia da Mentira) a 15 de novembro (Proclamação da República), os meses de 1983 na vida da matadora Isabel, traçados em desordem cronológica, são excelente leitura do que não funcionava no Brasil daquele momento, das leis que se erguiam à margem do Estado (qual?) aos deveres individuais, também decididos com base em barbárie. 





Os desejos encontram na ficção perspectiva redentora, tanto para os personagens da obra como para nós, leitores. Assim, as motivações e os resultados da literatura feita no Brasil central estão longe de ser gratuitos. Cobram o preço do deslocamento, em meio ao barulho ensurdecedor do disparo literário certeiro (e todo torto em sua estrutura, como as árvores do lugar) ou ao breve e último suspiro, permitido pelo silenciador que apenas disfarça a tragédia nacional. 

* Doutor em Estudos Literários pela UFMG e autor de “A reinvenção do escritor: literatura e mass media” e “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades”, Sérgio de Sá é professor associado na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.
 
“Vento de queimada”
  • De André de Leones 
  • Record
  • 518 páginas 
  • R$ 89,90
 
 
Trecho do livro
(“Vento de queimada”, de André de Leones)

A raiva vai esvaziando a gente. Mas eu não tinha muita coisa depois de tudo aquilo. Não tinha muita coisa além da raiva. Eu não me sentia como se tivesse, pelo menos. Não fiquei com muita coisa depois de tudo. Aqui dentro. No jeito que eu via as coisas. Você vive num mundo, e de repente esse mundo não existe mais, ou se transforma noutra coisa, ou se revela como outra coisa. Eu reagi. Reagi como pude. Reagi usando o que me deram. Meu pai viu que eu tava perdida e ofereceu a única coisa que tinha pra oferecer.




O que ele te ofereceu?
Violência. Ele me ofereceu violência. A possibilidade de usar a violência. E de usar a raiva.
E você aceitou.
E eu aceitei. Acho que foi isso que aconteceu. Acho que é por aí. Talvez. Não sei. É complicado. Também sou filha do meu pai.
A gente é o que é?
A gente é o que é, e então se torna outra coisa.
Ou não.
Ou não.
Mas o vazio não diminui.
Ela sorri no escuro, sorri pela primeira vez desde que iniciaram a conversa. A vingança é um prato que se come vazio, diz.
 
 
O criador e suas criações
André de Leones comenta os romances que lançou antes de "Vento de queimada"
 
“Hoje está um dia morto” (Record, 2006) 
O primeiro romance que a gente publica costuma cair mais perto da árvore. “Dia morto” é insano e desbragado, pois, aos vinte e poucos anos de idade, foi a única forma que encontrei para expressar o que foi crescer em uma cidade bicentenária de dez mil habitantes, com três colégios católicos e altos índices de alcoolismo e suicídio. Mas não me matei.





“Como desaparecer completamente” (Rocco, 2010) 
Escrito sob encomenda, é importante para mim porque foi nele que comecei a desenvolver a estrutura “coral” que levaria adiante em “Terra de casas vazias” e “Eufrates”. É doloroso pensar nele porque foi escrito em um dos piores momentos da minha vida e a toque de caixa (por exigência contratual), o que me levou a um esgotamento nervoso. Sobrevivi.
“Dentes negros” (Rocco, 2011) 
Narrativa pós-apocalíptica, ou nem isso. Queria escrever um livro árido, curto e concentrado, cheio de elipses e coisas não explicadas. Consegui.

“Terra de casas vazias” (Rocco, 2013)
Trabalhei nesse romance por quase quatro anos, em três países, várias cidades e estados de espírito diferentes, mas com uma sensação de convalescimento. Foi um companheiro fiel, e por ele tenho enorme carinho. Quando escrevi a passagem final, também não enxerguei aquela outra margem do Mar Morto — e tudo bem.
“Abaixo do paraíso” (Rocco, 2016) 
Começa como um thriller político e vira um pesadelo incestuoso e (metaforicamente) parricida. Vi que o Brasil rumava para o abismo e me aproximei para dar uma olhadinha.

“Eufrates” (José Olympio, 2018)
Uma história sobre a amizade entre dois machinhos descompensados, estruturada a partir de uma série de outras narrativas nas quais trabalhei por anos de forma independente. A tempestade entrevista no final ganhou corpo e despencou nos anos seguintes. Se “Abaixo do paraíso” expõe a doença que acometia a Nova República, “Eufrates” documenta (marginalmente) os seus estertores.