Jornal Estado de Minas

PENSAR

Joca Reiners Terron: narrativa perturbadora em 'Onde pastam os minotauros'


 
Depois dos apocalípticos “A morte e o meteoro” (2019) e “O riso dos ratos” (2021), o cuiabano Joca Reiners Terron, um dos melhores escritores brasileiros da atualidade – porque ninguém termina de ler um livro dele “impunemente” – retorna com mais uma obra inquietante sobre o desastre civilizatório com “Onde pastam os minotauros” (editora Todavia), desta vez com inspiração num instigante elemento fantástico, o Minotauro grego. A narrativa ágil, com capítulos curtos, apresenta a rotina dos três protagonistas – Crente, Cão e Lucy – num abatedouro de bois halal cercado por plantação de soja em lugar imaginário no interior do Mato Grosso. A vida conturbada dos três leva o leitor a reflexões diversas, desde a matança exacerbada de animais para o consumo humano igualmente exagerado, tragédias da pandemia, o insolúvel conflito étnico religioso no Oriente Médio trazido para o Brasil e, finalmente, a complexidade da condição humana no planeta.





Eles têm muitos motivos para odiar o trabalho, principalmente, depois que o abatedouro é vendido para muçulmanos e passa a adotar novas regras no abate dos animais. Conforme a tradição muçulmana, o abatedor tem de ser muçulmano, por isso, Ahmed – que sofre porque sua família foi dizimada por israelenses – assume essa função de degolar o gado, para desgosto dos demais funcionários, que ficam relegados a segundo plano. Cão é um manejador que tem compaixão pelos bois, então, cabe a ele tratá-los bem e conduzi-los cegamente para a morte. Isso porque um manejador cruel, obviamente, enfrentará resistência dos animais. Cão, entretanto, percebe que é manipulado pelos donos do abatedouro, que visam nada mais do que o lucro, e se rebela contra isso passando para o tráfico de drogas, do qual também irá se arrepender.

Lucy Fuerza, a namorada do Cão, é a secretária que odeia os dois patrões, que se preparam para receber o grupo de inspetores religiosos que atestarão a qualidade da carne para exportação. E Crente vive o drama de ter perdido a mulher para a pandemia e ver a filha também doente à beira da morte num hospital, com a culpa de tê-las contaminado. Enquanto os protagonistas destilam ódio e buscam vingança em meio à abundância de carne dentro do matadouro, do lado de fora, uma horda de miseráveis fica à espera de um mísero osso para matar a fome. Terron faz o contraponto entre o excesso de carne do lado de dentro e a escassez do lado de fora, num corte explícito do drama da desigualdade social.

Mas o que é inquietante mesmo em “Onde pastam os minotauros” é a crueldade na degola de bois dependurados. É difícil um leitor que come carne ficar indiferente ao longo da narrativa. Não seria surpresa se interromper esse cardápio pelo menos enquanto lê o livro, embora Terron não creia nessa possibilidade. “Não acredito que uma obra de ficção possa ter efeito tão concreto. Eu não tinha em mente qualquer aspecto moral que porventura o livro possa trazer, ao menos não no sentido que uma fábula de Esopo tem, delineada e inflexível. Talvez a história do Cão, do Crente e de Lucy Fuerza apenas queira incutir algumas perguntas na cabeça do leitor, provavelmente sem respostas. Mas não sou alheio à ideia de que o último anseio moral da literatura é mudar o mundo”, disse ele em entrevista ao Pensar.






MINOTAUROS


A façanha de Terron em “Onde pastam os minotauros”, entretanto, vai além de dramas pessoais. Numa guinada fantástica, o autor conduz a narrativa para o outro lado, o ponto de vista dos bois perplexos com a crueldade humana. O leitor mais antenado vai se lembrar do poema “Um boi vê os homens”, do livro “Claro enigma” (1951), de Carlos Drummond de Andrade – declamado pelo próprio Terron em vídeo disponível no YouTube. E mais do que isso ainda, faz do abatedouro um labirinto e vice-versa. No delírio do Cão para compreender os bois, surgem as criaturas metade humana, metade touro, os minotauros, habitando o abatedouro-labirinto, um paradoxo que Terron jogo no colo do leitor para reflexão. “Ninguém nunca ouviu essa história do nosso ponto de vista. Em todos os lados, nas cidades e no campo, nos supermercados e nas plantações, exceto os santos, as crianças e os idiotas, como esse que nos guia através do curral circular, e portanto estão mais dispostos àquilo que dizemos, porque o conhecimento real que eles têm de sua própria miséria deixa o nosso abate quase intolerável, não existe quem nos ouça. O touro pensa que o matadouro é o labirinto e o homem é o minotauro. Assim, ao touro, só lhe cabe o papel de homem. Ninguém nunca ouviu essa história. A história do minotauro do ponto de vista dos bois. Nós não fazemos nada além de comer o que nos dão e tramar nossa vingança”.

Em meio à crueldade e à alucinação, Terron desenvolve, então, um thriller instigante e fantástico para um desfecho imprevisível que caminha para o confronto entre os abatedores, os donos do abatedouro-labirinto e, é claro, os bois confinados e sedentos de liberdade.

OBRAS PARA REFLEXÃO


Joca Reiners Terron se destaca como um dos principais escritores contemporâneos pela diversidade de temas, estilo, linguagem e ousadia de suas obras, desde os primeiros livros, “Hotel Hell” (contos) e “Não há nada lá”, este um curioso delírio literário que entrelaça a vida de personalidades famosas. Em “Noite dentro da noite”, o escritor mescla metalinguagem, polifonia e atemporalidade na vida de um menino que perde a memória durante uma brincadeira na escola. Nesta obra, o contexto de amnésia leva o protagonista já adulto a uma viagem ao horror do nazismo e também à ditadura militar brasileira nos anos 1970. A complexa trama, além desses fatos históricos, inclui até elementos místicos e uma flor-vampiro. 





Outra obra curiosa é “A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves”, narrativa policial e fantástica envolvendo um zoológico. De novo, Terron apresenta o tema da identidade, a “criatura” sem nome, portadora de doença rara e vítima de preconceito e violência. Méritos também para “Do fundo do poço se vê a lua” venceu o prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional com a história de dois gêmeos idênticos separados após a morte do pai e que trilham destinos diferentes. Com uma trama lastreada em São Paulo e no Cairo, Terron aborda o difícil tema da transexualidade dos protagonistas William e Wilson/Cleópatra, cuja mudança radical de vida surge da fantasia cinematográfica da rainha egípcia interpretada pela atriz Elizabeth Taylor, com uma narrativa literalmente fantástica.

Antes de “Onde pastam os dinossauros”, Terron escreveu “A morte e o meteoro” e o “O riso dos ratos”. O primeiro é uma ousada aventura literária que parte da Amazônia destruída e tem como protagonista um indigenista com a missão de levar os últimos remanescentes indígenas para o México, mas os seus interesses são obscuros em meio a segredos ancestrais e insetos alucinógenos.

Em “O riso dos ratos”, o escritor conta a história de um homem com doença terminal que tenta vingar o estupro da filha num mundo em que a população foi dizimada por uma febre. As cidades estão em ruínas, invadidas pela vegetação, sujeira e esgoto e os sobreviventes são escravizados por uma milícia religiosa e obrigados a se alimentar de cachorros, ratazanas e outros animais famintos capturados. E as mulheres são confinadas como rebanhos para reprodução sexual. Uma porrada no estômago do leitor desavisado. (Leia entrevista com Joca Reiners Terron na página 4)
 

“ONDE PASTAM OS MINOTAUROS”

  • Joca Reiners Terron
  • Editora Todavia
  • 184 páginas
  • R$ 69,90 (impresso)
  • R$ 49,90 (e-book)
 
 

TRECHO DO LIVRO

 
“O Cão tinha pedido demissão do matadouro e começado a traficar crack. Descobrira algo sobre si mesmo: que era usado pelos patrões. Sua piedade pelos animais fez dele o melhor manejador da região: o gado o seguia como ao flautista de Hamelin, ele que dizia isso, seguia-o até o despenhadeiro. O Crente não sabia bem quem era o tal flautista nem para que banda ficava Hamelin, se perto de Amambai ou de Aquidauana, mas conseguia entender o que o Cão queria dizer. Os touros têm uma memória inabalável, não se esquecem de uma mágoa. São incontáveis os manejadores que maltratam o gado nos currais de engorda e depois não servem para os currais de matança, pois ao vê-los os animais recuam ou empacam no brete, a caminho do abate, precisando levar choques elétricos para saírem do lugar. O estresse da situação deixa o processo perigoso e endurece a carne, que acaba sendo descartada pelos fiscais muçulmanos. Se o manejador é violento no pasto ou no curral de engorda, não serve para o matadouro. Os manejadores de matança precisam ser suaves e silenciosos, como o Cão. O gado o acompanha cegamente para a morte.





Quando a piedade do Cão passou a ser usada para servir ao abate industrial de animais, quando ele adquiriu consciência de que seu carinho pelo gado só servia para esse apaziguamento de fundo econômico, que seu amor pelos bichos amaciava a carne deles, aumentando o valor do quilo, decidiu arranjar outro modo de sobrevivência: passou a vender a droga, primeiro aos funcionários do frigorífico, depois aos fodidos do distrito. Logo, com o suicídio de um cliente, um velho serrador de porco aposentado, descobriu que vender crack equivalia à mesma troca suja entre vida e morte, talvez apenas menos dolorosa. Talvez era boa porque apaziguava a fome. Um dia o Cão disse ao Crente que os bois estavam fadados a não conhecer a morte natural. Eram abatidos, até mesmo uma vaca leiteira que cumpriu seu ciclo produtivo, no meio da vida. Sabemos quantos anos um cachorro e um gato vivem, mas não um touro. Não quis atrair mais ninguém para a morte, e no final, ao ser preso por tráfico numa burrada, num vacilo que até parecia ter sido por querer, o Crente chegou a suspeitar que a prisão tinha sido um alívio para ele. Ao ser solto quatro anos depois, o Cão já não parecia ser a mesma pessoa.”