Breno Kummel
Especial para o EM
Brasília já é a terceira maior cidade do Brasil, mas sessenta e poucos anos após sua inauguração ainda é uma metrópole que se esforça para conquistar uma personalidade cultural para si, apesar dos avanços dos últimos anos. Em termos literários, a cidade seguiu por muito tempo sob duas sombras tristonhas, uma a das descrições do cerrado que frequentemente lembram nosso canhestro primeiro romantismo (o enraizamento local se garantiria pela especificidade da flora do cenário), e outra, maior e mais imponente, a do épico de insanidade que foi sua construção, no geral narrada com o dominante sentimento de admiração pelo triunfo do presidente e só de passagem se dispondo ao sacrifício sociologicamente correto de cometer um parágrafo ou capítulo em nome da exploração desregrada e o morticínio altíssimo dos operários.
São muitos os livros (e, na capital federal, a ficção e não-ficção vivem se confundindo) que listam os elogios ao urbanismo e ao modernismo arquitetônico, assim como as visitas dos intelectuais ilustres do mundo inteiro que se dispuseram a empoeirar os sapatos com a terra do planalto, livros quase sempre escritos com muita pesquisa documental e correção no português e nenhum dando a impressão de que o autor não preferia estar esse tempo inteiro em Paris, ou, na falta da grana, no Rio de Janeiro, pelo menos. Livros que dificilmente contam o que foi feito dos operários sobreviventes que, a contragosto das autoridades que esperavam que sumissem após a inauguração, optaram por ficar na cidade que construíram. Poucos falam do que acontece numa cidade que brota no meio do nada e é povoada pelas mesmas pessoas e vícios que constituíam o resto caótico do país.
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“Vale o que tá escrito”, do autor estreante que assina apenas como Dan, é um romance todo a contrapelo dessa linguagem oficialesca e congratulatória que ainda segue com força incomum e cansativa no discurso sobre Brasília.
O romance mostra a cidade como ela é para a maioria da população que nela reside, em que autoridade é palavra que designa aquele vizinho com quem não se deve mexer. É a vida de pessoas comuns, distantes de narrativas nacionais ou modernistas, interessadas em conseguir pagar as próprias contas e, se possível (e também em prioridade altíssima), saciar suas pulsões libidinais.
O livro abre com a narração contemporânea de Danylton, barista incompetente que maneja um café quase falido e que tenta salvar o casamento à beira da ruína. Em uma tarde vazia de clientes, ele vê passando rapidamente na calçada ninguém menos que Lilico, sujeito que por todas as estimativas das pessoas de seu antigo bairro deveria estar debaixo da terra há algumas décadas, desaparecido na acepção bem latino-americana da palavra. Esta visão impulsiona o narrador à investigação sobre todas as violências que permeavam as relações sociais de sua infância e início de adolescência de classe média baixa, na tentativa de escrever um livro que quiçá lhe serviria de redenção.
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Linguagem da rua
É um romance sobre a vida da rua, escrito na linguagem da rua, com os dois pés fincados nessa realidade, em todos seus desarranjos. É nítido na narrativa um afeto muito genuíno e nada piegas pelas vidas e pela molecagem e malandragem que vicejam nessa desordem, um romance em que o medo se constrói pela mistura de repulsa e admiração, do mesmo jeito que a ironia e o deboche não inviabilizam a dignidade dos personagens narrados, sabendo muito bem que o patético ou mesmo o ridículo existem em convivência com o trágico e que tudo se dá pelo equilíbrio nas escolhas do escritor.
O saldo do livro é a soma surpreendente de faroeste latino-americano com romance de formação, mas um romance de formação em que o protagonista só observa: a grande história que tem para contar ocorreu apenas próximo a ele, com o pessoal um pouco mais velho no seu bairro, e na hora de contar ele ainda se baseia em suposições e coisas que ouviu dizer, de cuja veracidade, inclusive, desconfia.
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As influências de Roberto Bolaño, Elena Ferrante, João Antônio e Paulo Lins, que assina a orelha do livro, são perceptíveis em medida igual à do mundo televisivo e midiático dos anos 1990, época em que ocorre a maior parte da história, mas se percebe também a capacidade de transformação dessas obras anteriores em algo novo e muito vivo. Um romance de vitalidade e energia impressionantes, que talvez servirá para atrapalhar pelo menos um pouco o automatismo dos discursos oficialescos sobre Brasília, tão cansados de serem repetidos quanto nós estamos de escutá-los.
Breno Kümmel é romancista, autor de “Uma noção ainda vaga de todo o dano” (Editora Zouk)
“Vale o que tá escrito”
- De Dan
- DBA
- 224 páginas
- R$ 59,90