O amor pelo cerrado e a preocupação com o possível desaparecimento do bioma levaram Maria José Silveira a escrever “Farejador de águas” (Instante). O mais recente romance da escritora nascida em Goiânia e radicada em São Paulo é uma saga familiar iniciada com uma citação de Ailton Krenak (“O futuro é ancestral. Ele é tudo que já existia. Ele não é o que está lá em algum lugar, ele está aqui.”) e que entrelaça personagens fictícios com fatos históricos, sociais, políticos e religiosos que marcaram o centro do Brasil ao longo dos últimos 100 anos.
Dividido em oito partes, “Farejador de águas” tem imagens fortes, como a passagem da Coluna Prestes pela vastidão do cerrado e pelos “arruados, povoados, vilas, vilarejos, pequenas cidades” do Centro-Oeste do país. Personagens marcantes como o “farejador” Minino, encarregado de identificar as nascentes de rios para saciar a sede dos insurgentes e sua companheira, Maria Branca, se juntam aos “revoltosos contra o governo de Arthur Bernardes que querem melhorar a vida do país e do povo.”
Em mais uma demonstração de plena desenvoltura na articulação entre acontecimentos reais e criações ficcionais, como já fizera em livros como “Maria Altamira” (que se inicia com uma “cidade sepultada” por um vulcão e chega até o desequilíbrio ambiental provocado pela usina de Belo Monte) e “Guerra no coração do cerrado” (versão romanceada da vida de Damiana da Cunha, liderança da etnia kayapó-panará, que serviu de ponte entre a sua cultura e a do colonizador branco), Maria José Silveira conduz a trama com mão firme ao longo de quase um século de “grandes transformações” no Centro-Oeste, como a construção de Brasília.
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Ela ainda nos oferece frases de efeito capazes de resumir o estado emocional de seus personagens: “Sentimento ruim é rio que afoga a gente.” Como ocorreu nas obras anteriores, ela faz dos efeitos do tempo, “esse grande apaziguador das dores”, o protagonista maior do nono romance.
As dores podem até ser apaziguadas pelo decurso do tempo, mas as lutas brasileiras – pela terra, pela água, pela preservação de seus biomas, pelos direitos dos povos indígenas, pelo protagonismo feminino – continuam a motivar a escritora, formada em comunicação social e antropologia, a criar suas histórias.
'Assim, quando as minas da região foram finalmente descobertas, os primeiros combates dessa guerra já tinham sido travados. Os ódios estavam instaurados e, a qualquer contato, entravam em ebulição. E, se algumas tribos indígenas do Centro-Oeste eram mais dóceis e fáceis de serem aprisionadas, como a dos goyás, outras, como a dos cayapós, respondiam na mesma moeda a qualquer avanço branco.'
('Guerra no coração do cerrado', 2006)
Leia, abaixo, a entrevista de Maria José Silveira ao Pensar do Estado de Minas com citações de trechos de “Farejador de águas” e referências a outros livros da autora.
Como nasce “Farejador de águas”?
Quase sempre os meus romances nascem de questões que vejo ao meu redor. Questões que me mobilizam, me apaixonam e me fazem dedicar um, dois anos de minha vida a pensar e escrever sobre elas.
Foi assim desde o meu primeiro romance, “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”, onde crio uma linhagem de mães brasileiras para entender como a grande mestiçagem de nosso país poderia ter se dado.
Com “Farejador de águas”, quis tratar do cerrado, nosso bioma tão esquecido e ameaçado no decorrer dos últimos 100 anos. Poucos o valorizam e pouquíssimos têm se dado conta de como o agronegócio vem desmatando-o e colocando-o em um processo quase irreversível de extinção – é raro você ler uma notícia, como a que saiu recentemente, denunciando que o desmatamento do cerrado cresceu mais neste ano do que o da Amazônia.
Portanto, o “quase” antes do irreversível vem do meu “wishful thinking” ou, em bom português, minha doce ilusão. E para contar esse processo de extinção, acompanho meus personagens Zé Minino e Maria Branca, com sua família de cinco filhos, desde a passagem da Coluna Prestes por Goiás até mais ou menos os dias de hoje.
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Como a literatura a fez perceber a força de sua origem e que trazia a sua terra com você?
Esse é um sentimento cujo fundamento, acredito, está nos anos de nossa infância. Muitos escritores reconhecem isso, inclusive Machado de Assis que escreveu: “... por maior que tenha sido a ausência, o lugar onde alguém passou os primeiros anos há de dizer à memória e ao coração uma linguagem particular.”
Como goiana que saiu cedo de sua terra, a ponto de esquecer o quanto essa influência me era profunda, só vim a reconhecer esse sentimento quando de fato comecei a escrever. O ato da escrita tem a capacidade de revolver nossas características mais profundas, entre elas, muito particularmente, a infância.
Na apresentação de seu romance, você revela que o desejo de escrever “Farejador de águas” veio da compreensão da própria ignorância a respeito do cerrado, “do que significavam suas árvores baixas e retorcidas.” O que descobriu sobre o significado desse ecossistema para você e para o país?
Li bastante sobre o cerrado, mas foram os artigos e entrevistas de Altair Sales Barbosa, talvez o cientista que mais entende desse bioma, que me alertaram sobre um fato extraordinário.
As árvores desvalorizadas do cerrado, por raquíticas, baixas, feiosas, estão entre as mais antigas do planeta e desenvolveram certas características que aprofundam no solo suas raízes e as tornam fatores de enorme importância para transportar água e, assim, contribuírem para a formação dos maiores aquíferos do país.
Alguns até a consideram como uma “floresta de cabeça para baixo”. Outros as subestimam. Poucos se dão conta de que seu desmatamento significa uma gravíssima ameaça a nossas águas.
Como foi entrelaçar fatos que marcaram a história do Brasil ao longo de um século com a criação ficcional?
Amo entrelaçar esses fatos. Meu orientador do mestrado na USP, Juarez Brandão Lopes, saudoso intelectual e professor, dizia que, para mim, a pesquisa parecia uma habilidade natural.
Logo no meu primeiro romance, senti que para a escrita de ficção ela também seria. Fora “Pauliceia de mil dentes”, romance sobre a São Paulo em que vivo, e “Aqui.
Neste lugar.”, romance alegórico e distópico que tem nossos mitos e lendas como personagens, em todos os meus outros romances, eu trabalho com pesquisas. Gosto de apoiar meus personagens nas circunstâncias de seu entorno; dá mais sentido a eles, acredito.
Creio que a grande dificuldade que se apresenta, no meu caso, ao tratar de questões que, a princípio, podem parecer abstratas – como a extinção do cerrado, a miscigenação brasileira, a Usina de Belo Monte – é encontrar os protagonistas para vivê-las, ou concretizá-las, o que faço, claro, antes de começar a escrita. Depois de encontrá-los, a ficção abre o caminho e tudo vai se encaixando.
A primeira parte de “Farejador” tem a Coluna Prestes como mola propulsora das ações de seus personagens. O que mais a atrai nesse fato histórico? Por que não é tão conhecido pela população brasileira?
De fato, são poucos os livros sobre a Coluna a que pude ter acesso no momento em que escrevia o livro, e nem todos bons. Como digo nos agradecimentos, “A noite das grandes fogueiras”, de Domingos Meirelles, foi meu apoio em relação a essa parte. É preciso que eu diga, no entanto, que meu foco não era a Grande Marcha que agitou o interior e o imaginário do país.
Ela foi algo portentoso que, certamente, daria um romance épico, mas não era esse meu propósito; a Coluna só entra em meu romance como uma etapa de formação para meus protagonistas.
Através dela, quis dar a eles a possibilidade de se afastar da mesmice da vidinha isolada do pequeno produtor naqueles anos. Quis fazê-los conhecer mais do país e da necessidade de sua transformação, algo que irá marcá-los profundamente.
E é mesmo uma pena que esse fato histórico (a Coluna Prestes) tenha sumido na convulsão de tantos outros fatos históricos. Talvez por sua complexidade, suas contradições, as traições sofridas, o abandono de muitos de seus líderes ao objetivo de continuar a luta, os confrontos entre ideias talvez muito avançadas para um país arraigadamente injusto, as características do partido do qual Prestes se tornou um líder autoritário – e também as questões ideológicas, com certeza.
Todas essas dificuldades podem ter propiciado seu esquecimento. Mas quem sabe algum escritor, algum dia, possa resolver enfrentar tudo isso e criar um épico nacional? Gostaria de poder ler um romance assim.
Como a religiosidade, “o misticismo calado fundo no peito”, influencia o rumo de seus personagens? O que mais a fascina na história de Santa Dica e sua “República dos Anjos” e como foi transportar essa história para o romance?
Santa Dica, a “Conselheiro de saias”, foi um pedaço fascinante da história de Goiás. Ela, jovem mulher de constituição frágil, ousou enfrentar coronéis e os poderes da Igreja Católica para dar terra e trabalho a quem fugia da situação de miséria e opressão.
Distribuiu terras de sua fazenda Mozondó e criou uma comunidade que a tinha como santa milagrosa, ao mesmo tempo em que criou e comandou um exército que a defendia das inúmeras tentativas dos seus inimigos. Figura típica das sociedades camponesas, Santa Dica provocou a ira dos grandes proprietários de terra da época, que conseguiram levá-la à prisão por duas vezes.
No entanto, há controvérsias sobre sua relação com a Coluna Prestes. No meu romance, assumo a versão dos que a colocam como aliada, pois o propósito de defender os brasileiros espoliados e enfrentar os coronéis era comum a ela e aos oficiais que lideravam a Marcha pelo sertão. Achei essa versão mais coerente.
“Farejador”, na parte chamada de “Grandes transformações”, tem uma reconstituição da construção de Brasília. Qual o impacto da nova capital para o Centro-Oeste e para o imaginário nacional?
A construção da capital do país no Centro-Oeste era sonho antigo dos brasileiros e, muito especialmente, dos goianos que trabalharam arduamente para que o local escolhido para sua construção fosse em Goiás. Venceram essa batalha que transformou toda uma extensa região que, até então, era bastante isolada do restante do país. Abriram-se estradas, ligaram lugares distantes, e o impacto foi inegável.
O carisma de JK e a capacidade de erguer uma cidade tão moderna quanto Brasília, no Planalto Central, quase da noite para o dia, provocou um sentimento de espanto, esperança e admiração por todo lado. No meu romance, “O fantasma de Luís Buñuel”, falo sobre essa construção. Tão logo foi inaugurada, as belas colunas do Palácio do Alvorada se espalharam de norte a sul; garrafinhas cheias de sua terra vermelha eram vendidas como lembranças; e a oposição a sua construção foi se tornando risível.
Como não poderia deixar de ser, grileiros e oportunistas também correram atrás das oportunidades que se abriam com as estradas, e provocaram grandes conflitos pelo interior, como foi o caso da revolta de Trombas e Formoso, que começa com a chegada dos grileiros à região, atraídos pela riqueza que a abertura das estradas traria. Para os meus personagens, as mudanças foram tremendas. Zé Minino e seus filhos participam de tudo isso.
Como você determina, a cada romance, o momento de encerrar a pesquisa histórica e iniciar a criação literária? Ou estas etapas jamais se separam?
Quando percebo que já tenho o material que me interessa anotado em minha caderneta de trabalho, fecho a pesquisa e começo a escrever. Entro no mundo da ficção, e consulto minhas anotações apenas quando é preciso. Posso escrever muitas páginas sem consultá-las porque, então, é a imaginação e a linguagem que fazem seu trabalho.
“De que é feito um rio?, ele se perguntava. Água, tempo e a terra que lhe dá o leito.” E do que é feito um romance?
Paixão, palavras, e o movimento que o tempo provoca. Paixão, porque sem ela é impossível escrever sobre qualquer tema. Palavras, porque são elas que nos amparam. E movimento que o tempo provoca porque, sem movimentos e sem o atravessar do tempo, adeus romance.
O livro “Aqui. Neste lugar.” é dedicado a Mário de Andrade. Por que você considera “Macunaíma” como “um de nossos primeiros romances-fantasia” e qual o diálogo que estabeleceu entre o seu romance com a obra de Mário?
“Macunaíma”, obra-prima do modernismo que revolucionou nossa literatura, é considerado um romance-fantasia por muitos estudiosos. Eu apenas os sigo. Como sigo tanto Mário como Oswald, esses dois irmãos-que-nunca-fizeram-as-pazes e, cada um, a sua maneira, revolucionou a literatura brasileira.
Comecei a escrever esse meu romance em um momento muito doloroso em minha vida, quando meu irmão mais velho estava hospitalizado por quase dois anos, e a cada dia com menos esperança. O que eu queria, naqueles dias, ao me sentar frente ao meu computador, era literalmente fugir dessa grande tristeza.
Pensei, então, em escrever sobre nossos mitos e lendas, ainda que não soubesse para onde eles me levariam. E aconteceu que o ato de escrever, naqueles dias, acabou me trazendo vários elementos inspirados pelo “Macunaíma” do Mario.
Inclusive a ousadia de transformar “nosso herói” nos gêmeos Macu e Naíma, e fazer do romance algo bem diferente do que costumo fazer. Assim, quando terminei, vi que “Aqui. Neste lugar.” só poderia mesmo ser dedicado a ele.
“Maria Altamira” também traz uma saga familiar e que chega à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. O que a levou a escrever esse romance?
Era um momento em que os jornais publicavam muito sobre a construção da usina de Belo Monte, e como antropóloga que sou, já era possível prever algo das consequências que isso traria para os ribeirinhos e indígenas da região.
Mas a faísca para o romance aconteceu quando vi uma passeata de indígenas e apoiadores passar debaixo da minha janela, gritando o slogan “Vem pra rua, vem! Contra Belo Monte, vem!” Eu fui, e voltei decidida a escrever o romance.
Mas entendi que faltava algo, e me lembrei de Yungai, nos Andes peruanos, cidade que foi totalmente soterrada por uma monstruosa avalanche, provocada por um terremoto. Pensei em colocar lado a lado essas duas catástrofes: uma provocada pela natureza; a outra, por uma decisão humana.
Comecei a escrever a parte de Yungai, que eu conhecia porque morei quatro anos no Peru. Quando quis passar para a parte de Belo Monte, soube que deveria conhecer a cidade de Altamira e o Rio Xingu, os ribeirinhos e os indígenas.
Foi a decisão mais acertada que já tomei em relação à escrita de um romance. Tive a sorte de poder contar com o apoio do ISA (Instituto Sócio Ambiental) e voltei de lá com clareza sobre o que e como escrever a história.
Voltando à apresentação de “Farejador de águas”, você define as tramas contidas no romance como “histórias de luta que aconteceram, acontecem e ainda por muito tempo acontecerão em nosso país.” Estas são as histórias de seus livros?
Que pergunta certeira! Nunca havia pensado nisso assim, mas creio que essa pode ser uma boa definição para o que faço. As lutas fazem parte de nossa humanidade, coletiva e individualmente.
Elas nos fazem mais solidários, mais interessados no outro ao nosso lado, mais generosos. Elas transformam o mundo e, junto com ele, nos transforma. Não que o mundo hoje seja lá grande coisa, mas sem elas, onde estaríamos?
Trecho
(De “Farejador de águas”, de Maria José Silveira)
“Tinha dias em que a paisagem ralentava a marcha, um verde e novo alegre nas serras, um vale escancarado de flores amarelas, uns ipês e flamboyants com tons de amarelo, roxo, rosa, branco espocando aqui e ali, o ar de fragrâncias, uns galhos de buriti alçados pela graça das águas a seus pés e as aves em volta, tudo isso fazia com que oficiais e soldados sorvessem com os olhos o dom de uma beleza esquecida. Sentiam-se mais leves, mais confiantes. Sorriam. Descobriam a boniteza do cerrado.”
*
E, se era bem verdade que quando a Coluna entrava em alguma cidade era ou bem recebida ou vítima de emboscada, tudo dependia do poder político da região e da fama que a precedia. Boa ou má, era essa fama que ia abrindo ou complicando os caminhos. Porque, além da guerra das armas, havia a guerra das notícias. Era a imprensa alarmista e enganosa a favor do governo e contra as ações dos revolucionários e os poucos panfletos da Coluna. Os jornais da cidade contra as folhas dobradas dos revoltosos.”
Depoimento
“Questões reais em harmonia com a ficção”
“Em 2019, quando lemos o original de ‘Maria Altamira’, acreditamos na força da história e imediatamente o contratamos. A mesma situação se deu no ano passado, quando recebemos o texto de ‘Farejador de águas’. Os dois livros têm em comum a abordagem de questões sociais e a menção a personagens e acontecimentos reais, os quais convivem de maneira harmoniosa com personagens e eventos fictícios.
A escrita inventiva e envolvente de Maria José também possui a característica de capturar o leitor para o ambiente da narrativa. E suas histórias ainda nos permitem conhecer as terras de um Brasil quase esquecido, como Altamira, no Pará, em‘Maria Altamira’, e algumas localidades de Goiás, estado natal da escritora, em ‘Farejador de águas’. Para a Instante, é um privilégio ter Maria José Silveira em seu catálogo, escritora que merece maior reconhecimento pela riqueza e pela contemporaneidade de sua obra.”
Silvio Testa, editor da Instante
“Farejador de águas”
- De Maria José Silveira
- Editora Instante
- 256 páginas
- R$ 74,90