Perdas. De um ente querido. De um relacionamento amoroso que se encerra. De amigos. De convivências. De nacionalidade. Da saúde. De um ideal. Se à primeira convencionamos chamar de luto, em que a morte é referência, as demais estão associadas a uma condição da vida, são “lutos do estar”, como ressalta Christian Dunker, psicanalista, professor titular do Instituto de Patologia da Universidade de São Paulo (USP), autor do livro “Lutos finitos e infinitos” (Editora Planeta/Paidós).
“O luto não se resume à perda de uma pessoa amada, mas é uma espécie de paradigma genérico para pensar a experiência humana da perda”, afirma o psicanalista.
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Em abordagem teórica ancorada na psicanálise, antropologia, sociologia e na política, Christian Dunker escreve “Lutos finitos e infinitos” sob o impacto da morte de sua própria mãe. Nesse processo de elaboração da perda, reflete como esse luto se conecta e convoca lutos anteriores, como o de seu pai, o luto de sua avó e do segundo marido dela, que tratava por avô: não chegou a conhecer o avô biológico, desaparecido, em uma batalha na Segunda Guerra Mundial, perto de Moscou, portanto, objeto de um luto infinito.
“Um luto termina quando a perda se integra em uma cadeia de lutos que o precedeu e o tornou possível. Essa tarefa pode se afigurar terminável para alguns e infinita para outros. O luto é uma experiência de conexão e desconexão entre separações, envolvendo reparações e transformações futuras, e não apenas passadas”, sustenta.
Dunker considera que a perspectiva individualista das sociedades modernas torna o trabalho de elaboração do luto psíquico cada vez mais solitário e difícil: não conta com grandes narrativas religiosas, nem muito apoio comunitário. “Encontramos, em contrapartida, um outro dispositivo que é a literatura”, afirma.
Diferentemente dos lutos finitos, elaborados em um espaço de tempo, em que “algo se perde tornando-se passado, algo se transforma vigorosamente no presente e algo é reconstruído e permanece conosco no futuro”, há lutos que, por motivos históricos ou estruturais, se tornam infinitos.
É esse novo tipo de luto que Dunker introduz na obra: tem dimensão política importante, à medida em que o luto inconcluído no âmbito familiar se conecta ao luto de outras pessoas, que têm o seu luto aberto e inconcluído também, sendo uma importante referência as mães da Plaza de Mayo, que, em ato ritual semanal, lembravam filhas, filhos, netas e netos desaparecidos sob a ditadura brutal.
A sociedade brasileira carrega inúmeros lutos infinitos pela ausência do devido reconhecimento, respeito e reparação do Estado. “Podemos olhar a formação do Brasil a partir de uma população de enlutados. Milhões de mortos nas travessias, nos apresamentos, nas caravanas, nas epidemias, nas expedições guerreiras, nos cativeiros indígenas e negros, nas epidemias catequistas”, aponta Dunker.
Escravizados perderam a sua nação e a sua liberdade; indígenas perderam parentes, o modo de vida e o território; judeus ibéricos perderam pátria e religião; e, ao cabo de tudo, portugueses perderam o seu império. Mais recentemente, somam-se a estes o luto de mortos e desaparecidos pela violência da ditadura militar, da pandemia de Covid-19, e diariamente, corpos que se empilham nas periferias metropolitanas pela violência policial; ou pela violência política.
“A hipótese de pensar a formação do Brasil a partir do luto coletivo e massivo nos quatro âmbitos definidos por Freud, pessoas, países, ideias e amores, nos leva a reconsiderar o ‘trato dos viventes’ como formação de uma unidade simbólica, composta da combinação entre estruturas antropológicas e processos históricos, políticos ou econômicos”, afirma Dunker.
O trato dos viventes compreende a disputa narrativa entre vivos, mortos e ainda não existentes. “Isso também permite entender a revolta daqueles a quem foi negado o luto, os impasses no processo de reparação, a reafirmação brutal dos processos que levaram à perda, ao silenciamento da história, enquanto esse trauma e essa fantasia do Brasil convivem como polos formativos de um sintoma fracassado”, afirma Dunker.
Entrevista com Christian Dunker
Por que alguns lutos são finitos e outros não?
Os lutos enquanto processo individual, que têm um término mais ou menos previsível ,não em termos cronológicos, têm de enfrentar um conjunto mais ou menos constantes de problemas: o que foi que perdi nesta pessoa?
Eu perdi mesmo ela para sempre? Como eu me relacionava com essa pessoa, como ela fez isso comigo e eu com ela? E esse conjunto de problemas não é uma curva definida de etapas, mas é mais uma colcha de retalhos, que você vai juntando e uma hora forma uma unidade, costura os pedaços.
Essa descrição do luto terminado está muito ligada a olhar para esse processo como intrasubjetivo, que cada um tem de fazer. Existem situações, contudo, em que o término do luto pode ser uma decisão mais ou menos conscientemente decidida com consistência: por exemplo, não quero terminar o meu luto porque o estado sumiu com o corpo do meu marido; ou eu não quero terminar meu luto a este filho, o que posso dedicar a ele um amor que não quero que se feche para além do luto. Então posso ter lutos infinitos, que são abertura para os lutos de outros.
Seria uma escolha, do tipo “não quero e não posso esquecer”’?
Há certos tipos de luto que são patologicamente infinitos: depressões, melancolias, os lutos espectrais, certas formas de não luto em que a pessoa não consegue reconhecer que houve perda de natureza simbólica.
Então, são infinitos, no sentido de que são interminados, não chegam a um fim. Mas o que quero introduzir é um luto infinito, de outro tipo, que não é patológico: são lutos infinitos que se colocam como espécie de deliberação, como exigência de justiça, e tem relação com um luto coletivo, que envolve o luto dos outros em geral.
E nesse caso há uma dimensão política importante, uma dimensão de ato de amor importante, em que o seu luto inconcluído vai se conectar com o luto de outras pessoas, que têm o seu luto aberto e inconcluído também.
Há a questão de quem tem direito ao luto, como fazemos o luto, como às vezes se sobrepõe com a ideia de esquecimento ou de perdão.
Perdas que acontecem antes do que o previsto, como um erro médico, uma morte por violência policial ou outras situações que abreviam a vida, são mais difíceis de elaborar?
Mais difícil. No fundo, quando tem a interveniência humana, uma morte por violência, você vai ativar o mecanismo da culpa. Você vai começar a odiar os responsáveis, vai querer investigar as circunstâncias, tudo isso torna o luto mais complexo.
E quando isso desengancha num acontecimento social que reverbera na realidade, isso acaba se complicando e se impulsionando, quando a gente vai se aproximando da ideia de que esses lutos sentidos como injustos, no quadro de violência, corre o perigo de se tornarem lutos inconcluídos, lutos patológicos ou se tornarem lutos infinitos.
No caso da pandemia, que deixou 705 mil mortos no Brasil, há um luto coletivo a resolver?
A primeira pessoa a falar em lutos infinitos foi um historiador americano que presenciou uma batalha durante a Guerra de Secessão, onde a maior parte das pessoas daquela cidade morreram.
E ele disse que quando há tantas pessoas mortas desse jeito, quem são aqueles que vão fazer tumbas, preces, quem vai lembrar deles, chorar por eles? Aqui haverá um luto infinito, que não será possível fazê-lo. Essa ideia aparece muito na experiência nossa com a Covid.
Tanto porque nos foram vedados rituais por motivos sanitários, quanto está cada vez mais claro que você tem um país com 3% dos habitantes no mundo e aqui morreram 10% daqueles que sofreram por Covid. Há um crime, uma violência de Estado, um tratamento político que convida a um luto em aberto.
No livro discuto uma certa proximidade entre esse luto de pessoas tratadas como números, em cova comum, em confronto com uma pessoa, uma morte que acontece nessa circunstância que simboliza a singularidade de todas essas outras, que é a Marielle Franco. São exemplos, que tento trazer, próximos do luto infinito.
Nas ditaduras militares tanto no Brasil quanto na Argentina, Chile e outros países da América Latina, houve pessoas mortas pela tortura e violência de Estado. Muitas famílias nem sequer tiveram acesso aos corpos de seus entes. Qual é a importância para a elaboração do luto de ter o corpo do familiar morto?
É muito importante. Uma das coisas interessantes do luto é o fato de que a morte humana é simbólica, no sentido de que a pessoa sai da comunidade dos vivos e entra numa outra comunidade, a dos mortos. E nessa outra comunidade ela tem um lugar: ou está no cemitério ou as cinzas foram lançadas no mar, ela tem um lugar.
Para que a gente consiga elaborar a separação é muito importante ter a existência desse lugar. Porque o luto, no fundo, é a integração dessa pessoa que se foi num novo lugar. É assim que a gente elabora para as nossas crianças: virou uma estrela.
Então, ela está num lugar, tem um lugar. O que ocorre nos processos em que o corpo desaparece é que não há o lugar. Onde ele está? Há vários dispositivos para tentar reincluir pessoas mortas pela violência de Estado num lugar que ajuda ao luto individual e coletivo, finito e infinito: para uma família que não tem o corpo de seu filho pode passar por um monumento feito pelo estado, pode passar por um gesto coletivo como andar na Plaza de Mayo, pode passar pela escrita de um livro, tudo isso são análogos ao processo terapêutico que vai ajudar a pessoa a fazer isso.
Do ponto de vista individual, é racional e todos sabemos que nossa vida é finita. Por que sempre a morte traz uma surpresa, traz um choque, um assombro, mesmo quando as pessoas estão com doenças terminais?
É um fato da vida, mas é um fato que sempre acontece com os outros. É algo que você intui por generalização que vai acontecer, mas que não acredita porque é uma ideia, em certo sentido impossível. Podemos pensar na morte do outro, mas a nossa morte, está sempre meio recoberta, com a ideia de que na hora “h” alguém vai me salvar, sou uma pessoa especial, essa é uma regra que se aplica aos outros.
Isso também tem uma relação com a perda das pessoas que sabemos que estão indo, às vezes estão muito doentes, mas isso mexe com uma crença muito básica, que é infantil, mas permanece no adulto quando estamos diante desse tipo de questão, que é a crença de que o amor salva: se eu tiver mais próximo, se eu rezar muito, se eu amar muito, até a morte consigo superar. Isso vem junto com a desagradável contrapartida de que então, se ele se foi, foi porque eu deixei de amá-lo quanto eu podia.
Ou se ele se foi, aconteceu porque ele não me amou quanto ele podia, quanto eu precisava, não fui tão importante assim para ele. Sabemos que tudo isso é bobagem, mas sentimos assim, como se fosse uma ofensa ao nosso narcisismo, ofensa ao nosso ego, pelas condições de formação de nosso ego, não fomos feitos para elaborar completamente isso.
Para Freud, isso era um assunto que tinha a ver com a prova de realidade, o que cada um entende e percebe da realidade. Para o Lacan, a gente tem a outra ideia, de que a morte não é apenas um problema na realidade, mas é algo que mobiliza o real, ou seja aquele impossível que existe dentro da realidade.
Em algum momento sentiu que o tema do luto gera maior resistência nas pessoas, que é um tema desagradável?
Ele é desagradável, mas é também atraente. É maldito, mas ao mesmo tempo respeitoso, nobre. A minha própria experiência escrevendo esse livro foi muito diferente de todos os outros que escrevi.
Passa pelo fato de ter um desencadeante muito pessoal, a perda da minha mãe, e foi se desdobrando para dentro do processo de escrita. E aquilo que devia ser um meio para que eu pudesse elaborar, pudesse deixar ela ir, foi se tornando um jeito de eu deixá-la ficar.
E o texto começou a não ter fim, eu acrescentava capítulos. Foi uma luta, ao mesmo tempo teórica, mas também com o meu luto e isso se desdobrou no meu livro. No fundo é uma resposta que o livro vai dar para o problema que a gente está desaprendendo a fazer o luto.
É cada vez mais difícil tolerar o luto do outro, é cada vez mais solitário, individual. Tem aqueles pequenos rituais, mas depois a pessoa continua em luto e ninguém quer falar sobre aquilo. Então a gente sem grandes narrativas religiosas, sem grande apoio comunitário, privados de alguns meios essenciais para fazer esse trabalho psíquico. Mas em contrapartida a gente encontrou outro dispositivo que é a literatura.
É um jeito de escrever, elaborar muito intimamente, solitariamente a perda, e socializá-la, porque os seus leitores vão ter contato com isso, o luto dos seus eleitores vai se enganchar no seu e você vai fazer parte de um trato dos viventes, o pacto entre os que já se foram, nós que estamos e os que virão. O luto não é só olhar para trás. É também a partir do que olha para atrás, criar o futuro.
“Lutos finitos e infinitos”
• Christian Dunker
• Editora Planeta/Selo Paidós
• 480 páginas
• R$ 119,90