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Estado de Minas PENSAR

Natalia Timerman: 'A literatura pode chegar aonde a psiquiatria não chega'

Autora do recém-lançado 'As pequenas chances' conta como escreveu o novo livro a partir da perda do pai


08/09/2023 04:00 - atualizado 08/09/2023 00:10
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Natalia Timerman
Natalia Timerman: 'Talvez a literatura consiga chegar a lugares que a psiquiatria não chega porque a vida não tem um propósito' (foto: Renato parada/divulgação)
Medicina e literatura convergem, mais uma vez, sob a escrita da psiquiatra, mestra em psicologia e doutoranda em literatura Natalia Timerman. Na pegada do sucesso editorial de “Copo vazio” (Todavia, 2021), que vendeu até agora 28 mil exemplares, em que a protagonista sofre de “ghosting” ou desaparecimento sem explicações da pessoa com quem se relacionava, agora é a vez do romance “As pequenas chances”. Neste, a narradora Natalia revive os últimos momentos, no hospital, do pai e médico Artur, doente terminal e a memória que segue, ao luto, um entrelace entre as emoções da dor individual e das dores coletivas das perdas. 

Lançado no início de agosto, o novo romance da paulistana Timerman já vendeu seis mil exemplares. O lançamento presencial em Belo Horizonte será na próxima quinta-feira, 14 de setembro, às 19h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913). A rodada de autógrafos vai ser precedida de um bate-papo entre a autora e o escritor, ensaísta e tradutor Jacques Fux, autor de “Herança” (Maralto), entre outras temáticas que abordam a ancestralidade.
 
Leia, a seguir, a entrevista de Natalia Timerman ao Pensar do Estado de Minas.


Como foi transformar o luto em letras? Em que momento surgiu a ideia do livro?
 
A ideia do livro surgiu enquanto eu tomava banho, que é um momento, pra mim, em que as ideias fluem. E me veio o ímpeto de ligar para o médico de cuidados paliativos do meu pai (que morreu em 2019), com quem eu falava com muita frequência naqueles últimos tempos.
 
Eu pensei: que sentimento estranho, o paciente não existe mais. Então percebi que aí havia a semente de uma história. E justamente o segundo parágrafo do livro já descreve essa vontade de falar com o médico de cuidados paliativos do meu pai. Não havia mais nada a fazer depois da morte dele, mas o que eu poderia fazer era escrever.
 
 
É assim que eu lido com as coisas que acontecem comigo. Eu não escrevo para elaborar, não há uma intenção terapêutica para a minha escrita, escrevi porque precisava escrever. E a partir dessa porta de entrada, esse encontro hipotético com o médico, eu organizei toda a estrutura de uma história que na maior parte havia acontecido comigo. Mas como eu ia colocar isso dentro de um livro? Foi aí que entrou a parte ficcional, para sustentar a verdade da história que eu tinha vivido.

Embora para você a escrita não tenha esse propósito de elaboração, a literatura ajuda a elaborar a morte?
 
Durante os últimos dias de vida do meu pai e até depois, escrevendo o livro, eu li muito, e não foi teoria, era literatura. No hospital, então, só conseguia ler “Morreste-me”, do José Luís Peixoto.
 
Depois li alguns livros que falavam de luto, ao mesmo tempo em que era uma pesquisa para o meu livro, estava também cuidando do meu luto, lendo sobre pessoas que passaram por experiências de dor, de perda. Na verdade, eu me dizia: “é uma pesquisa para o livro”. Mas é também um jeito de elaborar, era só o que eu conseguia ler na época.
 
 
E por mais que a minha intenção não fosse essa, com certeza o livro causou o efeito inadvertido de uma elaboração, organização, dessa experiência do luto. O luto não é linear, não segue um roteiro, não segue um script, ele vai e volta. Tem momentos e, que acredito que estou melhor, e de repente, a dor vem de novo.
 
A escrita é parte disso também, ainda que a própria escrita tenha mexido, tenha revolvido essa dor, pois enquanto escrevia o livro, voltei a sonhar que o meu pai morria. 

O seu livro se inicia com a iminência da morte e, perto do final, há a recriação de um nascimento, num dos momentos mais fortes da narrativa. A inversão do ciclo foi proposital? 
 
Sim, a estrutura do livro me veio de fato, eu queria que fosse do luto ao nascimento. São três partes. A primeira parte é o luto, principalmente o luto judaico.
 
A segunda parte é a proximidade da morte, e nessa segunda parte há um cruzamento narrativo, são duas viagens, uma que vai e outra que volta. E a terceira parte do livro é a própria viagem, que vai em direção ao nascimento, à vida. Eu já sabia que o livro iria terminar com essa cena do nascimento.
 
 
Eu queria que fosse do luto ao nascimento. Agora não sei se é uma inversão, porque é um ciclo, acho que é só um seguimento desse ciclo, um jeito de ver.

Como se sente hoje em relação à morte do seu pai? 
 
A saudade sempre vem. O luto tanto passa, quanto não, ele se transforma. Não dói tanto mais, não aperta tanto, mas sinto muita saudade. Inclusive, na publicação do livro, me deu muita vontade de falar com meu pai, de mostrar para ele: “Olha o que eu fiz, pai!” Eu queria muito falar com ele, mas essa vontade não era uma dor, era mais uma perplexidade: a falta dele, me fez fazer algo que aumentou a falta dele, mas ao mesmo tempo não. Então há uma ambivalência aí.

Qual foi a reação de sua família ao ler o livro?

A maioria das pessoas gostou muito. Algumas pessoas sentiram que era a minha versão. Inclusive a Marta, que é personagem importante do livro, adorou, ao mesmo tempo em que disse: “Nossa, Nat, essa é a sua versão, eu vejo o que aconteceu de um jeito diferente”. E com certeza é a minha versão. Cada um só pode escrever a sua versão. Ela fez essa constatação e adorou o livro, comprou muitos exemplares para dar de presente. 

Ao mesmo tempo em que você tem formação médica é psiquiatra, fez o mestrado em psicologia e o doutorado em literatura. Como se dá essa interação entre a prática médica e a literatura?
 
Para mim, tem uma ligação grande entre as duas atividades. São duas atividades hermenêuticas, primordialmente. A escuta clínica tem algo de hermenêutica e a literatura também. Só que não posso impor essa ligação aos pacientes.
 
 
É algo que me serve: a literatura e a psiquiatria. Uma ilumina a outra. Se fosse colocar numa gradação, acho que a literatura iria me ajudar mais com a psiquiatria do que a psiquiatria com a literatura.  Agora, o propósito das duas práticas é muito diferente. Na psiquiatria, na medicina, o propósito é ajudar a pessoa, fazer diagnóstico, estabelecer um tratamento.
 
E a literatura não. A literatura talvez não tenha um propósito definido, e talvez consiga chegar a lugares em que a psiquiatria não chega, porque a vida não tem um propósito. Então, talvez por conta disso, a literatura consiga ir mais longe, consiga ser mais verdadeira, consigo chegar a lugres que não conheço, que de outras formas não conseguiria chegar.
 
Mas não é para nada, com um propósito, porque nesse mundo de utilitarismo nosso, se a gente encara a literatura também com esse utilitarismo, ela perde o vigor, ela perde a sua potência de ser inútil, de não servir para nada. De enfim, de ser um alento nessa nossa busca incessante de sentido, nessa nossa existência sem sentido.

Sobre essa questão existencial, a sua formação é mais materialista ou está mais vinculada a algum sistema de crenças de característica mais religiosa?
 
No livro até falo um pouco disso, o quanto a religião me amparou, mas que eu me senti religada nesse sentido religioso, não a Deus, mas aos meus ancestrais, à minha história, à história de minha família, às pessoas que vieram antes de mim, à humanidade, digamos assim.
 
Talvez a minha religião, no sentido de religação, seja a literatura. É issoo que sei fazer, é talvez o que eu mais goste de fazer, ou seja, escrever, ler, estar na literatura. Agora, se acredito em Deus ou se tenho fé, isso varia, não consigo me apegar a uma resposta fixa, às vezes sim, às vezes não. 

O que você mais admira em Annie Ernaux (escritora francesa, vencedora do Nobel de Literatura, autora de livros como “Os anos”) e outras escritoras que entrelaçam histórias pessoais e coletivas? Esse também é o seu objetivo?
 
A Annie Ernaux me inspira quando diz que vive o que usa para a experiência, a serviço da escrita, que ela vive para escrever, e tem a escrita como forma de apreensão da vida.
 
E essa coragem de fazer isso de um jeito muito sincero e verdadeiro, e também muito sofisticado, elaborado literariamente. Eu também adoro a Rachel Cusk. Sobre luto, gosto da Noemi Jaffe, que escreveu “Lili, novela de um luto”. Usando a própria vida como temática, a Carolina Maria de Jesus. 
 
capa do livro
(foto: Reprodução)
 

“As pequenas chances”
• Natalia Timerman
•  Editora Todavia
• 208 páginas
• R$ 69,90 (livro) 
•  R$ 44,90 (e-book)
• Lançamento: 14 de setembro, 19h, na Livraria da Rua Antônio de Albuquerque, 313, Savassi


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