Se é fato que um dia todos os nossos corpos estarão mortos, é também verdade que a literatura está além da materialidade da vida. No combate entre vida e morte, vence a escrita. Ao narrar os derradeiros dias de seu pai, doente terminal, em seis grandes atos, a autora francesa Emmanuelle Lambert recupera as memórias de infância, os entrelaces com as histórias dos afetos familiares e, sem autocomiseração ou excessiva indulgência, incorpora o pai permanentemente a este mundo dos vivos.
Por um lado, ele é vibrante, presente, amoroso; por outro, tantas questões ainda em aberto, sob a perspectiva feminina: um certo machismo enrustido, “deformado pela modernidade”, que ao masculino cabe a liberdade de inúmeras escolhas; à mulher, como se nunca boa o suficiente para “manter o seu homem em casa”, é atribuída a responsabilidade da estabilidade, da solidez, aquela que se esgota em promover e servir a família, em carregar os fardos do cotidiano, porque havia se construído com a ideia de que “amar é ficar”.
O pai é defensor das igualdades entre homens e mulheres, das liberdades, do desejo mútuo e dos jogos eróticos. Mas, por volta dos 60 anos, agarrou-se à máxima da juventude: “Um homem deve seu sucesso à primeira esposa, e a segunda esposa ao seu sucesso”.
Lançado no Brasil pela Autêntica Contemporânea, com tradução da escritora Adriana Lisboa, “O garoto do meu pai” é uma carta de amor da filha, que “desafiou” o desejo paterno ao nascer mulher.
O romance discute, em meio a memórias felizes e irreverentes, num gesto de amor e com muita sensibilidade e honestidade intelectual, um sem-número de questões que ainda viajam as gerações e se embricam à narrativa.
O sofrimento da mãe, que parece “inscrito num destino feminino”; o pai, a quem percebe como “instrumento de um sistema”; a preferência por filhos homens, o que, em certo momento, impõe-se subjetivamente à criança que busca a aceitação.
Tudo dito e posto, Emmanuelle Lambert registra: “Saber que ele sempre me amara, ao seu modo bagunçado e generoso, permitiu que eu me libertasse do seu amor. Às vezes me pergunto se não é impossível para um homem ter uma filha, ou pelo menos se não é impossível na sociedade a que pertenço hoje, tal como ela é. Mas não deixei de amar meu pai. Simplesmente abandonei o garoto que sonhávamos em mim”.
Nascida em 1975, na França, Emmanuelle Lambert é doutora em l etras, com tese defendida em 2003 sobre o teatro de Jean Genet. Escreveu livros como “La désertion”, “Giono, furioso” (vencedor do prêmio Femina de Ensaio em 2019) e “Sidonie Gabrielle Colette”.
Depois de ter trabalhado com o escritor Alain Robbe-Grillet na publicação de alguns de seus textos, em 2009 dedicou-lhe o seu primeiro livro, “Mon grand écrivain”.
Em 2011, publicou o romance “Um peu de vie dans la mienne” e, em 2013, “La tête haute”, ambos editados pela Les Impressions Nouvelles. Em 2012, assinou “Alain”, posfácio do livro de memórias de Catherine Robbe-Grillet.
Leia, a seguir, a entrevista exclusiva de Lambert ao Pensar do Estado de Minas:
Como encarar a finitude da vida?
O cérebro sabe sempre, mas não estamos nunca prontos para aceitar a morte das pessoas que amamos. Isso não nos impede de saber que não temos escolha. Mas há uma espécie de rebelião do coração.
E acho que isso corresponde a algo muito potente, um princípio vital, que coloca na morte a recusa de morrer. Eu vi isso nos últimos instantes do meu pai, a máquina, o corpo em seu momento terminal, mas ainda há algo que luta até o fim.
E acho que somos feitos dessa luta entre o desejo de viver e o passar do tempo, que nos lembra que estamos numa ladeira em declive. E o princípio de vitalidade, de vida, de amor, de descoberta, toda essa pulsação que há em nós, luta até o último minuto contra a morte.
Podemos aceitar intelectualmente a ideia, mas há algo na energia vital entre os seres que leva a recusar à morte. E na agonia – palavra que originalmente significa combate – há, apesar de sabermos que ao final a morte vencerá, um combate. E quando escrevemos, é para reverter essa perspectiva. Para que, ao final, não seja a morte a vencedora.
Escrever o livro “O garoto do meu pai”ajudou você a elaborar a morte de seu pai?
Eu não sei como as pessoas em geral fazem, mas sei como o fazem os artistas. E é isso o que eu tento, quando escrevo. Tento fazer arte. Temos essa oportunidade, de quando somos artistas, de transformar aquilo que é doloroso, individual, em algo coletivo. Mas não foi o propósito quando iniciei o livro.
Quando comecei, tinha necessidade de escrever e, pouco a pouco, a gente se reencontra com essa condição artística. Percebemos que isso nos ajuda a fazer coisas, que vão além de nós mesmos, e nos ajuda a lidar com as nossas pequenas dores.
Escrever, então, me ajudou a elaborar a morte do meu pai, mas eu diria que de uma maneira paradoxal, ao me forçar a reviver. Então, é uma elaboração especial. Aceitar a morte verdadeira, ao fazer reviver, por meio da criação e da arte.
Eu diria que elaborei, pois estava entre a aceitação à negação, e a literatura me permitiu finalmente aceitar a morte, mas não ficar em sofrimento. Eu não gosto dessa ideia do luto, não gosto da ideia de que em algum momento terminou com as pessoas que amamos.
Sentimos falta das pessoas que amamos todo o tempo. Todos os dias, até o fim de nossa vida. Mas por outro lado, você pode encontrar um meio de transformar a dor dessa falta, para que ela se torne fonte de uma lembrança agradável, de uma energia transformadora. Meu pai tinha uma personalidade muito alegre, energética.
Então, as minhas lembranças são alegres. Não há razão para não desejar as minhas memórias. Estou absolutamente certa, de que com a velhice, a nossa memória se esvanece, e eu sei, que mais tarde, terei o meu livro. Agora vejo que o escrevi por ele, mas o escrevi também por mim, para o futuro, para as pessoas que amo hoje e, também, por todas as pessoas que têm a quem guardar perto deles.
E é isso o que me dizem as leitoras e leitores franceses, que me escrevem, seja porque não têm pai, seja porque têm uma relação ruim com os seus pais, me disseram: “obrigada, agora sei o que é”.
A sua percepção sobre a morte parte de uma perspectiva materialista ou de uma perspectiva religiosa?
Eu tenho um pouco de ciúmes das pessoas que são espiritualizadas, seja por uma visão religiosa ou uma perspectiva espírita de reencarnação. Eu as invejo, pois realmente é mais fácil lidar com a morte por essa perspectiva espiritualizada.
Herdei de meu pai a visão materialista: não há nada antes, não há nada depois. Ele mesmo, no momento de sua morte, não acreditava em nada disso, não havia qualquer razão para, como uma pessoa crente, estar otimista, ver uma certa beleza na morte. Para pessoas como o meu pai ou para mim, não há nada, em particular, de formidável na morte.
É justamente o fim. E penso, realmente, que essa foi a razão pela qual escrevi. Eu creio que, quando não temos religião, é melhor ter a literatura.
O seu pai conversou com a família sobre a própria morte, a proximidade do fim, já que sabia estar em estágio terminal?
Quando eu era jovem, essa discussão fez parte da minha educação. Eu era adolescente e nessa época meu pai não estava doente. Ele me criou assim, dentro da ideia de que todos vamos desaparecer, essa visão materialista, que somos feitos de moléculas e que um dia tudo isso chegaria a um fim.
Ele falava com muita liberdade sobre a morte, não tinha medo de morrer. Ele tinha medo de ter um colapso e perder a sua faculdade intelectual. Depois, quando ficou doente, não falava muito, mas me disse, certa vez, que àquela altura já desejava morrer.
E essa é a função, acredito, do sofrimento do corpo. O corpo diz: “Já não posso mais”. Ele havia aceitado que passava por um nível de sofrimento em relação ao qual não poderia ir adiante.
Por outro lado, ele teve diálogos mais profundos com a minha irmã, que é mais espiritualizada do que eu. Ele sabia que a minha irmã tinha crença diferente, então, possivelmente. ela precisaria mais desse diálogo. Mas comigo não. Ele e eu partilhávamos a visão materialista e compreendi que só poderia contar comigo.
Nos conte quem é o garoto a que se refere o título de seu livro, “O garoto do meu pai”
Sou a primeira filha e meu pai sempre quis ter um filho homem. Eu fui a primogênita e acredito que, com alguma frequência, os homens de sua geração, ele nasceu em 1946, adoravam ter filhos homens.
E o que eu tentei fazer com o livro foi, ao mesmo tempo em que enfrentei a morte, abolir o momento presente e convocar todo o tempo passado com ele. Por isso, falo da minha infância, da infância dele, de nosso vínculo. Existe esse momento, na velhice, em que pegamos nossos pais pela mão, como eles faziam quando éramos crianças. E é por isso que evoquei todas essas memórias no livro.
Ele tem esse título porque é verdade, ele quis que eu fosse um menino feliz em minha infância. Evidentemente, meu pai sabia que ele tinha uma menina. Essa relação silenciosa que se forma entre as crianças e os pais, em que as crianças sentem alguma coisa ou supõem alguma coisa e inconscientemente tentam preencher as expectativas do pai. Mas, de fato, as expectativas de meu pai eram de que eu fosse uma criança feliz.
Quais são os pontos de interrogação deixados pelo livro que mais a fazem refletir, inquietar-se?
Há diversas camadas nesta questão. O primeiro ponto, como escritora, me trouxe uma preocupação quanto à interação com a leitora, o leitor. Foi o primeiro livro que escrevi na primeira pessoa e, por longo tempo, achei que não seria muito interessante falar de si mesmo. E me dei conta de que, ao fundo, quanto mais você é específica e quanto mais fala de seus sentimentos íntimos, mais toca as pessoas.
Então, isso foi muito importante para mim, porque destravei alguma coisa sobre a questão da autobiografia. Do ponto de vista literário, isso também me fez pensar sobre a relação com o passado e sobre como poderia tratá-lo na escrita, dando-lhe vida, refazer ressurgir o tempo, isso me interessa enormemente.
Depois, a coisa importante, e que eu não sabia quando comecei a escrever, sim, meu pai queria um homem, e eu sou uma mulher. E um jornalista me disse, que o livro narra como você se reencontrou com o seu gênero. Isso me interessou muito.
Pois a gente passa muito tempo tentando compreender qual é o seu lugar no mundo como mulher. Eu não havia refletido sobre isso literariamente, então isso me saltou os olhos, e veio a fazer parte das coisas que descobri.
Como escritora, ao escrever na primeira pessoa, você sente algum constrangimento em expor a sua própria privacidade?
Eu pedi a minha mãe que lesse o livro antes de todos, para que ela pudesse me dizer se as coisas a incomodavam. E ela me disse essa frase muito bonita, que eu poderia escrever o que quisesse, pois aquilo não dizia respeito a ela. Quando escrevemos, as pessoas reais não são, jamais, exatamente como falamos. Há sempre uma brecha.
E é preciso lhes dar a liberdade para que vivam a própria vida. Acho que não é preciso ter medo de se expor. Acho, inclusive, que não devemos nem nos perguntar sobre isso. Eu não tenho mais medo disso. No início, tive um pouco de constrangimento, mas atualmente isso não me assusta mais. Com o tempo, de qualquer jeito, os livros vão muito além de nós.
“O garoto do meu pai”
• Emmanuelle Lambert
• Tradução de Adriana Lisboa
• Autêntica Contemporânea
• 128 páginas
• R$ 54,90 (livro)
• R$ 38,90 (e-book)