Stefania Chiarelli
Especial para o EM
O dia 20 de setembro de 2019 foi a data da morte do pai de Emmanuelle Lambert. Em “O garoto do meu pai” (Autêntica Contemporânea), a escritora francesa narra, em primeira pessoa, os últimos cinco dias de vida na companhia paterna. Acompanhamos a rotina hospitalar, visitas médicas, uso de remédios paliativos, decisões sobre os rumos do tratamento do câncer. Em paralelo, o retrato de um homem intenso, amoroso, por vezes, brutal.
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De origem humilde, filho de sapateiro, “Meu pai, o deus imprevisível da minha infância, tinha, para mim, um livro numa das mãos e um instrumento musical na outra”. Em outros momentos, encurta distâncias, ao saltar da França para a Argélia da avó materna, mulher analfabeta que nos anos 1930 se casara com um advogado burguês, também ficcionalizada em “La tête haute” (de cabeça erguida, em tradução livre). O romance foi publicado em 2013, ainda não traduzido no Brasil.
O estrato autobiográfico interessa à autora, cuja fotografia infantil está estampada no livro e se desloca para a capa, transformada em desenho e sinalizando que sim, partimos da esfera do vivido, mas ela só tem relevância quando transfigurada pela linguagem. Apesar de compor um relato memorialista, os verbos no passado aparecem com pouca frequência no texto. Dizer “ele era” é imobilizar algo que permanece vivo e pulsante no presente.
Em “O garoto do meu pai” está ausente o desejo de construir uma história reparadora, mirando a redenção. Lambert escolhe olhar incertezas, heranças confusas, “filiações cheias de buracos”: um luto também deve ser gestado e parido, sugere. Para dizer, ao fim dessa jornada trôpega, que vai ficar tudo bem.
Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF. Publicou, entre outros, “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (7Letras, 2022)