Jornal Estado de Minas

PENSAR

Sigrid Nunez relembra vida em apartamento de ícone cultural norte-americana

As memórias são de Sigrid Nunez, premiada escritora norte-americana. Mas quem está ao centro do palco, sendo observada por um enquadramento emocional e enviesado, é o ícone cultural Susan Sontag (1933-2004), uma das intelectuais públicas norte-americanas mais importantes e libertárias do século 20.





 

Antes de se debruçar sobre “Sempre Susan, um olhar sobre Susan Sontag”, escrito por Sigrid Nunez em 2011, e agora lançado no Brasil pela editora Instante, convém que o leitor pesquise e amplie o foco da cena principal: quem foi Susan Sontag? No contexto do auge da Guerra Fria (anos 1960, 1970), Sontag ousava questionar, em ensaios brilhantes e militância ativa, a política externa norte-americana.

 

Foi um tempo em que, por exemplo, no que diz respeito à América Latina, o imperialismo estadunidense se apresentava patrocinando golpes de estado, apoiando ditaduras, inclusive a brasileira, ensinando aos órgãos de controle como construir aparelhos de repressão “eficientes”, com o emprego de tortura. 


Naquele momento em que a sombra do macartismo ainda pairava sobre os Estados Unidos, Susan juntava-se aos gigantes da literatura latino-americana, como Octavio Paz, Carlos Fuentes e Julio Cortázar, alinhando produção literária com a permanente reflexão sobre as questões políticas, para construir o referencial crítico de luta dos povos por autonomia.




 
Por todos os ângulos que se observe a obra e o ativismo dessa excepcional mulher, salta a compreensão dos problemas filosóficos que envolvem a ideia do “dizer a verdade”; empreitada que se conecta com o conhecimento, a pluralidade e sistemas morais de crenças, constituindo-se em instrumento contra a violência e o autoritarismo. Discursou Susan Sontag, ao receber em 2001, o controverso Prêmio Literário Jerusalém, país frequentemente criticado pela violação dos direitos humanos de palestinos:

“A primeira tarefa do escritor é não ter opiniões, mas dizer a verdade... e recusar-se a ser cúmplices de mentiras e de informações falsas. Literatura é o lar da nuance e da oposição das vozes da simplificação. A tarefa do escritor é tornar mais difícil acreditar nos saqueadores da mente. A tarefa do escritor é nos fazer ver o mundo como é, repleto de muitas e diferentes demandas, partes, experiências. É tarefa do escritor retratar as realidades sórdidas, as realidades que causam enlevo. É da sabedoria fornecida pela literatura (a pluralidade da realização literária) ajudar-nos a compreender que, o que quer que esteja acontecendo, sempre se passa algo mais.”

A militância de Susan também marcou a luta libertária feminina: rompeu barreiras à frente de seu tempo para, sob risco de incorrer a exageros, fincar o emergente paradigma às mulheres sobre como serem ouvidas e respeitadas profissionalmente.
 
Para tanto, com seu comportamento – frequentemente acusado de arrogante – demonstrava que as mulheres não precisavam temer ser deselegantes por serem assertivas; não precisavam esconder a sua inteligência temendo ser tachadas de autocentradas; tampouco precisavam se sobrecarregar com o mundo de tarefas, tradicionalmente atribuídas ao gênero, com medo de serem apontadas como “masculinas”. Se esse fosse o preço de se lançar ao mundo, que assim o fosse: superar, era o desafio. 




 
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Em “Sempre Susan”, é da coxia que Sigrid Nunez se detém sobre Susan Sontag, ao centro do palco. A autora recupera um caleidoscópico de memórias idiossincrásicas, e de âmbito privado, centradas no relacionamento complexo entre a intelectual, o filho David e a namorada do filho, a própria Sigrid, que se passam num curto intervalo de aproximadamente 18 meses, algo entre 1976 e 1977.
 
Sigrid conheceu Susan em 1976. Egressa de um mestrado na Universidade de Columbia, trabalhava como assistente editorial na New York Review of Books, publicação na qual Susan era a estrela. Sigrid Nunez foi recomendada para ajudar Susan com a correspondência que se acumulava, pois naquele momento a intelectual estava debilitada por uma mastectomia realizada para o enfrentamento do câncer. 

Susan vivia com o filho David, então com 24 anos, em um amplo apartamento de cobertura, que se abria numa vista panorâmica para o rio Hudson, na 106th Street com a Riverside Drive, em Manhattan. Logo Nunez começou a namorar David, e alguns meses depois, foi viver com ele, no apartamento da intelectual.




 
O arranjo durou pouco mais de um ano, numa relação triangular que se revelou bastante tensa e complexa. Trinta e cinco anos depois, Nunez reuniu as suas lembranças de intimidades da família, estimulada por um editor, que lhe encomendara, em princípio, um artigo sobre mentoria, no qual Nunez descreveu como Susan Sontag havia sido importante para a sua escrita profissional. 

Sob a perspectiva de estilo, “Sempre Susan” é livro bem escrito, que interage com romances premiados de Sigrid, sobretudo “O amigo”, que vai ganhar as telas do cinema, em longa-metragem estrelado por Naomi Watts. Carrega um desconcertante conteúdo sobre Susan Sontag, numa narrativa de interesse psicanalítico, já que à semelhança das sessões terapêuticas, faz uma busca profunda de curiosidades, historietas e características, sobretudo aquelas mais terríveis de Sontag, que orbitam o relacionamento conturbado e triangular entre Susan, David e Sigrid. São passagens que a ex-nora, agora escritora e memorialista, sustenta serem de caráter não ficcional.
 
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Mas partem de uma percepção tão particular e íntima que a própria Sigrid, se viu às voltas em sonhos quando escrevia o livro. Sonhos sempre abrem largos horizontes à interpretação. Talvez estes digam respeito àquela que, sem que as vistas alcançassem a altura da personagem, em certo momento, traiu a sua confiança, permitindo a ocupação por estranhos. “Como ela pode confiar em mim?”, é uma pergunta que Sigrid faz e paira sem resposta. 



Sigrid Nunez (foto: divulgação)


Entrevista/Sigrid Nunez

 



Como o seu relacionamento com Susan Sontag influenciou a sua escrita?
 
É interessante porque eu sempre penso nela com uma grande influência na minha escrita, no meu trabalho, mas não em termos de estilo, porque o modelo dela como escritora não era algo que exercia um apelo sobre mim.
 
Em primeiro lugar, porque o ponto forte do trabalho dela, que a maioria das pessoas apreciava, inclusive eu, era a escrita não ficcional, o que eu, à época em que a conheci, sequer podia me imaginar escrevendo ensaios críticos do tipo que ela escrevia.
 
Eu não possuía nenhuma daquelas habilidades, então, nunca seria uma parte da minha vida. E a ficção que ela escreveu, eu estava de acordo com a maioria das pessoas, e ela também chegou à mesma conclusão, não era tão boa quanto os ensaios dela. Não funcionou.




 
Mas, como escritora, como uma pessoa que levou a literatura tão a sério, e que conhecia tanto e acima de tudo, a amava tanto, ela tinha o gosto literário mais amplo do que qualquer pessoa que eu tenha conhecido. E era um gosto fabuloso: ela me apresentou a todo tipo de escritor que me influenciaria.
 
Ela também me ensinou sobre como era importante levar todo o negócio da escrita muito a sério e em como não pensar sobre ele como uma vocação, mas como uma profissão, assim como esperar que seja uma tarefa extremamente difícil.
 
Susan postergou o quanto pode o uso de computadores, e quando conversamos sobre isso ela disse: “a última coisa que você deseja é tornar a escrita algo mais fácil”. Eventualmente ela substituiu a máquina de escrever, mas esse tipo de pensamento - e eu prestava muita atenção em tudo o que ela dizia, porque acredito em tudo o que ela disse.




 
E ainda sinto isso em relação a ela, que ela realmente conhecia muito a esse respeito. Então nesse sentido, ela foi a maior influência sobre a minha escrita, maior do que qualquer um que eu tenha conhecido. 

Como se sentiu ao recuperar suas memórias para escrever o livro?
 
Não foi difícil porque em primeiro lugar é um livro curto. E eu sabia que só colocaria no livro o que realmente me lembrava, basicamente, só coloquei o que me recordava e construí a história a partir disso. Eu não mantive um diário àquela época, não tinha referências.
 
Mas foi um período tão vívido e importante em minha vida, e também envolveu um relacionamento amoroso com uma pessoa muito importante para mim, ela foi uma personagem tão vívida e, muito do que eu disse, já era conhecido das pessoas pois era parte da imagem pública de Susan Sontag.




 
Então comecei a escrever como um ensaio de 20 páginas e eventualmente, se estendeu em um livro de pouco mais de 100 páginas. Foi algo que eu sempre conversei com outras pessoas e não um passado morto.
 
Mas para ser honesta, quando reli o livro, eu havia esquecido de muitas coisas e se tivesse escrito ele agora, não teria lembrado de tudo o que escrevi. Então, quando escrevi, em 2011, foi possivelmente a última oportunidade para que eu pudesse me lembrar. 

O que lhe estimulou a iniciar esse projeto tanto tempo depois de tantos anos dos fatos?
 
Logo depois que Susan morreu, tudo o que lia sobre ela dizia que não tinha senso de humor, o que não era verdade. Então eu escrevi um pequeno memorial, publicado numa revista, em que falei sobre isso.
 
E tempos depois, alguém me pediu para escrever um ensaio sobre mentoria, e foi aí que fiz um texto de 20 páginas sobre Susan Sontag e quando foi publicado, o editor me procurou e pediu que considerasse estender aquele ensaio para um livro, que concordamos que seria curto, de memórias, e que não seria uma biografia.




 
Sou grata ao editor pois nunca me ocorreu escrever um livro sobre Susan, nunca pensei em fazer isso.
 
Acredita que elaborou algumas de suas questões com Susan Sontag enquanto escrevia o livro?
 
Sim, acho que escrever um livro assim, lembrar, tentar compreender melhor já com uma distância emocional dos fatos. Foi uma experiência apaziguadora escrever esse livro.
 
Entre todas as pessoas que conheceram Susan e leram o livro, nenhuma delas disse que algo não seria verdade. É claro que nem todo mundo gostou do livro, mas digo que nenhuma pessoa questionou os fatos, então isso foi muito satisfatório. 

Após a morte dela, manteve relacionamento ou contato com o filho dele, David?
 
Não. Eu tive contato com Susan algumas vezes depois que me mudei da casa dela, mas não com David, mesmo quando ela estava doente e depois quando morreu. 



Há alguma conexão entre o livro “Sempre Susan” e outros romances que escreveu, como “O amigo”, sobre uma escritora que adota o cão de um mentor falecido, história que inclusive agora será levada para os cinemas?
 
Esta é uma boa pergunta. Os romances que escrevo sempre têm algo de autobiográfico e de elementos não ficcionais nelas. A narradora é uma mulher, que é escritora, da minha idade e falando na primeira pessoa. É similar à autora de “Sempre Susan”, a mesma voz.
 
Em termos de estilo são muito similares, mas ao mesmo tempo são bem diferentes porque “Sempre Susan” não é uma obra ficcional, é real, ao contrário do romance “O amigo” (publicado no Brasil em 2019 pela editora Instante, a mesma de “Sempre Susan”).
 
Mas acredito que a pessoa que lê os dois livros diria que foram escritos pela mesma autora e percebe que algumas coisas que aprendi com Susan ou que associo a ela também estão em “O amigo”.
 
Ou seja, se ela lesse “O amigo” não haveria nada na escrita que ela não reconhecesse ou que não fosse familiar a ela, perceberia a mentoria dela ali. 





Há diferenças entre a imagem pública ou “persona pública” cultivada por Susan Sontag e a pessoa no âmbito privado?
 
Susan Sontag foi, de certa forma, muito transparente, não tentava esconder aspectos de sua personalidade. Quando estava escrevendo “Sempre Susan”, eu sabia que muitas pessoas que a conheceram iriam ler o livro. E uma das coisas que me perguntei, em alguns momentos, que certas passagens eram íntimas, no âmbito da vida familiar e privada.
 
Mas ao refletir sobre isso, constato que de fato ela não fez segredo de nada, contou para todo mundo, tanto para as pessoas que a conheciam muito bem, quanto, também para aqueles a quem não conhecia tão bem. Então ela falava abertamente as coisas íntimas, privadas, não era uma pessoa reservada de forma alguma coisa.
 
Mas por outro lado, no âmbito da vida pública, ela se colocava como uma certa “persona”, em que todos diziam: “ela não tem senso de humor”, “ela leva tudo muito seriamente”, “ela é tão arrogante”, porque Susan sempre esteve muito preocupada com a sua imagem, e desejava projetar autoridade, era muito importante para ela se apresentar da mesma forma que um homem se apresentaria.




 
Susan rejeitava o comportamento em geral associado às mulheres, que estariam preocupadas em agradar. Contraditoriamente, Susan sempre queria ser a pessoa mais inteligente no ambiente. As pessoas admiravam, mas ao mesmo tempo temiam isso.
 
E Susan gostava, ela queria que as pessoas se sentissem assim. Uma outra questão é que, em sua persona pública, Susan também queria passar a ideia de completa independência, que rejeitou qualquer tipo de apoio financeiro para a educação da criança quando se divorciou, toda essa independência, etc. Mas ela foi muito dependente.
 
Com frequência ela foi apoiada financeiramente por outras pessoas, foi alguém que, de certa forma, se permitiu aceitar recursos do editor que a publicava. E também foi uma pessoa que não conseguia estar só. Tinha medo de ficar sozinha. As pessoas que a conheciam na vida privada acreditavam que havia algo de muito vulnerável e infantil nela. 





Quem foram as pessoas que mais estiveram próximas de Susan Sontag após o câncer?
 
Quando conheci Susan Sontag, ela tinha 43 anos e se recuperava de uma mastectomia radical. Não muitos anos depois, ela teve uma recidiva. E por fim, aos 72 anos, teve o câncer final que a matou. Então ela sempre foi uma pessoa vulnerável.
 
E havia muitas pessoas ao redor dela que desejavam cuidar dela, entre as quais, a sua companheira, a francesa Nicole Stéphane (filha mais velha do Barão James-Henri de Rothschild com a sua primeira esposa) com quem teve um longo relacionamento.
 
Nicole era uma figura muito, muito maternal. E é interessante notar que, no relacionamento de Susan com o seu filho David, era como se este fosse pai dela. David assumia o papel de uma figura paterna para Susan.
 
Roger Strauss, que publicou o primeiro livro de Susan, e publicaria todos os outros, mantinha com ela um relacionamento que foi muito além de profissional: eram amigos e confidentes, participava de diversos aspectos da vida de Susan, incluindo a crise da doença dela. Strauss se referia a David como “provavelmente meu filho ilegítimo”.





Em seu livro, a senhora menciona que Susan Sontag era obcecada por não ser uma pessoa conservadora, tradicional. Na prática, essa obsessão se confirmava?
 
Susan tinha um lado conservador, embora estivesse sempre muito alerta e fosse grande apreciadora da cultura pop, da vanguarda, etc, ela reverenciava a cultura tradicional europeia.
 
E ela estava muito consciente disso. Ela tinha valores muito tradicionais em relação a como uma escritora ou escritor e intelectual deveria se comportar. Ela certamente não era como uma pessoa boêmia ou hippie, do tipo “faça do seu jeito, viva e deixe viver”.
 
Ela sentia que havia certas formas de ser e de se comportar, certos princípios de comportamento. Por exemplo, eu sei que em algum momento da vida, ela fumou maconha, mas ela se opunha à ideia de que alguém pudesse usar drogas fortes para fins recreativos.




 
Exceto anfetaminas, para trabalhar. Não eram drogas para a recreação. Ela desaprovava as pessoas que abusavam de drogas, mesmo a bebida, socialmente. 

Como era o relacionamento de Susan com o filho David? O que lhe pareceu ao morar no apartamento dela, como namorada do filho? 
 
As pessoas estranhavam muito e diziam que isso nunca daria certo. Mas ela afirmava: “Não temos de ser como todo mundo” ou “não temos de ser convencionais, em outras culturas isso é muito comum”. Àquela época, ela estava namorando por um tempo o poeta russo Joseph Brodsky.
 
E ela dizia a Brodsky: “Não é verdade, não é assim na Rússia? As famílias russas são assim também, os filhos e esposas vivendo na mesma casa da mãe deles”. Então ela considerava que era algo perfeitamente normal e razoável a ser feito.
 
Eu não tive a mãe mais amorosa, inclusive, eu adoraria ter uma figura maternal em minha vida. Mas o problema realmente era que Susan não era uma figura maternal, de forma alguma.
 
O desejo dela de viver junto não se relacionava ao desejo de estar com a nora, mas antes, ela queria a vida de ambos centrada em torno dela e de suas necessidades, como se, num certo sentido, nós fôssemos os pais e ela a criança. 




 
Ela também dizia coisas do tipo: “David e eu sempre precisamos ter uma terceira pessoa”. Algo como se ela e o filho fossem o casal. Não se trata de incesto ou nada do gênero, era algo mais psicológico.
 
E as pessoas estavam sempre nos acusando, ouvíamos coisas do tipo: “Todos sabem que David e Susan dormiram juntos”. Isso era ridículo, nunca aconteceu. Então conviver com isso foi difícil, sabendo que as pessoas lá fora pensavam de nós como imorais numa situação imoral.
 
Mas o ponto é que ela tinha tanto medo de que nós nos mudássemos do apartamento dela, que, quando David quis fazer isso e disse para ela, Susan fez tudo para evitá-lo. E o fato de ela ter uma doença grave tornava impossível dizer “não”. Então Susan se sentia ameaçada por qualquer pessoa que pudesse tirar David dela, pudesse desviar a atenção de David em relação a ela.




 
Eu tentei escrever sobre isso da maneira mais cuidadosa possível. Mas essa era uma situação nada saudável, que nunca poderia dar certo. Ao final eu me mudei e algo que ela nunca me perdoou foi que, logo depois, ele também se mudou. 

Depois que a senhora se mudou, como ficou o relacionamento com o David e com a Susan?
 
Muitas coisas ruins aconteceram naquele caos que estava a casa quando eu disse que estava indo embora. De um lado, Susan dizia para mim que eu não podia sair da casa porque David nunca me perdoaria. E David dizendo para mim que eu não poderia deixar Susan, porque eu nunca poderia me perdoar. Depois que eu deixei a casa, David, Susan e eu continuamos a nos relacionar por um tempo, mas depois, David e eu terminamos nosso relacionamento. Pouco tempo depois ele montou o próprio apartamento, mas nós já não nos relacionávamos. 

Que tipo de imagem pública de Susan Sontag prevalecia entre feministas e intelectuais?
 
Havia duas visões diferentes. Algumas pessoas que sentiam que era uma feminista muito importante, o que realmente era, e que tinha coisas importantes a dizer sobre feminismo e se ler os ensaios dela, verá isso. Outras pessoas acreditam que aquilo o que ela escreveu sobre a liberação da mulher, o feminismo, a liberação das mulheres tem muito de crítica à mulher.




 
Nesse sentido, ela seria uma pessoa que acredita intensamente no feminismo e nos direitos da mulher, mas que ela tinha sentimentos de desdém em relação à maioria das mulheres e acreditava que eram responsáveis pela própria situação de opressão.
 
Muitas pessoas não gostavam disso. Aqui nos Estados Unidos, ao longo da vida adulta de Susan Sontag, ela foi a intelectual americana de maior visibilidade, e ela era uma mulher, ela realmente mais conhecida do que todos os outros intelectuais homens da época. Inclusive, muitos acreditam que ela alcançara esta visibilidade porque foi a época da segunda onda do feminismo. Susan exibia essa posição com orgulho.
 
E isso é absolutamente quem ela realmente era. Essa era a identidade dela. Mas em minha opinião, acho que ela era mais valiosa como pensadora do que como feminista: ela tinha certos pensamentos misóginos que nunca conseguiu superar, imaginando que ela própria seria uma exceção fora da curva em relação às demais mulheres. 





“Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag”
• De Sigrid Nunez
•  Tradução de Carla Fortino
•  Editora Instante
•  128 páginas
• R$ 64,90

Trechos

 
(De “Sempre Susan”, de Sigrid Nunez, com tradução de Carla Fortino)

“Isso é mais difícil para uma mulher”, admitiu. Querendo dizer: para ser séria, para se levar a sério, para ser levada a sério. Ela deu um basta nisso quando ainda era criança. Deixar o gênero atrapalhar seu caminho? Não na sua vida! Mas a maioria das mulheres era muito tímida. A maioria das mulheres tinha medo de ser assertiva, medo de parecer inteligente demais, ambiciosa demais, confiante demais. Tinha medo de ser deselegante. Não queria ser vista como dura ou fria, autocentrada ou arrogante. Tinha medo de parecer masculina. A regra número um era superar isso tudo (...) Ela certamente não tinha medo de parecer masculina. E era impaciente com outras mulheres por não serem mais como ela. Por não serem capazes de sair da sala das mulheres e se juntar aos homens. Sempre usava calça (em geral, jeans) e salto baixo (em geral, tênis) e recusava-se a carregar bolsa. O apego das mulheres a bolsa a espantava. Zombava de mim por levar a minha a todo lugar. De onde as mulheres tiraram a ideia de que ficariam perdidas sem uma bolsa? Homens não carregavam bolsas, eu não tinha percebido? Por que as mulheres se sobrecarregavam? Por que, em vez disso, não usavam roupas com bolsos suficientemente grandes para guardar chaves, carteira e cigarros, tal qual os homens?”
 
Enquanto escrevia este livro, sonhei com ela duas vezes. No primeiro sonho, estamos no balé. Nós nos encontramos durante o intervalo. Ela tem estado doente. Seu cabelo é curto, fino, seco, vermelho. “Bem”, ela pergunta, “você se infiltrou?”. Ela se refere à companhia de balé. “Por exemplo”, ela diz, “qual é a altura daquele bailarino?”. Respondo a ela. “Não, não”, diz. “Ele tem mais de seis metros de altura.” Digo que isso é impossível. Nenhum bailarino tem seis metros de altura. Ao que ela fica agitada e diz: “Como posso confiar em você agora?”. 

No segundo sonho, estou na casa dela, socinha. Ela está fora, e concordei em cuidar da casa. Enquanto estou lá, chegam dois estranhos, um casal chamado Pat e Mike Tribe. Vieram se apoderar do imóvel. São educados, mas firmes, e, embora eu tente, não consigo detê-los. 

Como ela pode confiar em mim? Não sei como me infiltrar direito e permito que os Tribe invadam a casa dela.