Jornal Estado de Minas

PENSAR

Em três atos, Nara Vidal apresenta seu novo livro 'Shakesperianas'


Professora, escritora, editora e tradutora mineira, mas radicada na Inglaterra, Nara Vidal retorna ao Brasil para lançar seu novo livro “Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare’’, em que lança luz sobre as personagens femininas de William Shakespeare (1564-1616).  A autora de “Sorte” – que lhe rendeu o 3º lugar no prêmio Oceanos de 2020 – se debruça sobre figuras icônicas como Julieta, Lady Macbeth e Cleópatra para um detalhamento de suas camadas, cenários e complexidades e contextualizações. 





“A minha questão é: por que as personagens femininas não foram tão valorizadas quanto os personagens masculinos? As personagens femininas de Shakespeare são sempre as mais interessantes, as mais ricas e as mais complexas. Então, por que são tão ignoradas?”, conta a autora, em entrevista ao Pensar.

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Em turnê pelo Brasil, a autora passará por algumas cidades para lançar o novo livro. Em Belo Horizonte, o encontro será na Livraria Jenipapo neste sábado, (23/9), às 14h. Inspirada pelas peças de Shakespeare, nossa entrevista com a autora será dividida em três atos. Atenção para o sinal.

PRIMEIRO ATO

No início, a autora Nara Vidal se apresenta. Nascida em terras mineiras, cresceu entre os diálogos dramáticos e melancólicos dos enredos de William Shakespeare. Durante momentos difíceis de sua vida pessoal, foi nos ensaios do dramaturgo que encontrou o consolo que ansiava.





Qual sua formação? 
Sou formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em português e inglês, e tenho mestrado em Artes pela London Met University.

Como você começou a gostar de ler? 
Na verdade, eu demorei bastante para começar a gostar de ler. Apesar da minha casa ser de professores, minha mãe ensinava história e meu pai de geografia, eu comecei mesmo a me interessar por leitura, como uma coisa a ser feita, só com 12 anos. 

E quais foram suas primeiras leituras?
Comecei lendo o que minhas amigas liam, muita história em quadrinhos. Lembro que meu pai viajava e trazia várias revistinhas da "Turma da Mônica". Meu gosto pela literatura se consolidou mesmo no ensino médio, quando eu tive a certeza de cursar Letras.

E como foi esse processo? 
Sempre me pareceu um caminho muito claro. Minha mãe sempre viu os estudos com uma forma de emancipação para as três filhas. Viemos de uma família originalmente pobre, sem estudos, o meu avô foi um autodidata. Quando a minha mãe conseguiu uma bolsa num colégio interno, não parou mais de estudar. Eu acho que ela viu nos estudos, uma maneira de se libertar de várias convenções e rótulos sociais. 





No livro, você conta que teve contato com Shakespeare em um disco de vinil de “Romeu e Julieta", aos cinco anos. Como foi isso? 
Era meu aniversário e eu tinha pedido esse disco de vinil para os meus pais de presente, mas eles eram muito bacanas comigo e queriam me dar um presente melhor. Então, escolheram uma boneca super cara que dividiram no crediário. Na manhã do meu aniversário, vi um pacote imenso que não parecia um disco de vinil (risos), fiquei tão frustrada. Chorei. Não conseguia esconder a minha decepção. Então falei que eu queria mesmo era o disco da Mônica de "Romeu e Julieta". 

Você lembra o que mais te marcou no disco? O que despertou essa vontade? 
Depois de tanto tempo, eu não sei bem a razão de ter gostado daquele disco. Mas, acredito que seja a sonoridade, eu me lembro de achar muito divertido os sons do nome “Capuleto”. Eu ouvia aquela historinha e achava tudo muito curioso e engraçado. Eu tenho uma coisa que se chama sinestesia, em que eu sinto gosto com as palavras. E ali foi a primeira vez que eu ouvi falar em William Shakespeare. Engraçado que eu era muito pequenininha, é curioso pensar nisso hoje. Como é que desde lá trás isso está ali. Sempre esteve ali.


SEGUNDO ATO  

Nara Vidal é mineira de Guarani, na Zona da Mata. Aos oito anos começou a aprender inglês sozinha. Professora, escritora, editora e tradutora, mudou-se para a Inglaterra em 2001, onde vive atualmente. Ao longo dos últimos anos, se dedicou a estudos e pesquisas sobre as obras de William Shakespeare.  

O que mais chama sua atenção na leitura de Shakespeare?
São as infinitas possibilidades de interpretar Shakespeare e como suas obras nos acompanham nas nossas urgências, pautas, pontos políticos, debates, inquietações e em nossas profundidades psicológicas. Enfim, no meu meu caso, ele abrange tudo isso, e é algo infinito. Harold Bloom, uma das maiores referências do estudo shakespeariano, disse algo que carrego sempre comigo: “A gente nunca consegue iluminar as obras de Shakespeare. É sempre o contrário, sempre o caminho inverso, são as obras de Shakespeare que nos ajudam a iluminar os nossos pensamentos, os nossos questionamentos”.  

O que te motivou a estudar sobre Shakespeare?
Eu comecei a estudar Shakespeare na faculdade de Letras, tive uma professora que leu uma peça para gente no original, e a partir dali eu fiquei apaixonada pela obra. Desde então, eu comecei a ler várias coisas sobre Shakespeare. Acho que ali abriu um portal. 





Qual foi a peça?
“Macbeth”. Foi a primeira peça e é ainda uma das peças que eu mais estudo, que eu mais gosto e que não tem fim. Essas possibilidades são intermináveis de estudar Shakespeare.

Como foi o processo de estudar as camadas das obras do Shakespeare?
Estudar Shakespeare é uma coisa curiosa, pois quando comecei a estudar, pensava “autores que eu leio, estudo e admiro tanto também já estudaram e já admiraram Shakespeare, como Virginia Woof”. Essa riqueza que eu vejo. É como se ele fosse uma intercessão entre nós e é bonito isso. Que um autor seja uma intersecção entre duas autoras que estão distantes há mais de 100 anos.

Apesar de ser conhecido mundialmente, suas obras não são tão populares. Por que? 
 Às vezes sinto que Shakespeare aparenta estar muito cristalizado, muito parado no tempo e empoeirado na estante. Eu gostaria muito de trazer isso para um ar fresco, para que as pessoas conhecessem, se motivassem e se entusiasmassem lendo as coisas dele. Há toda uma questão da pompa e do distanciamento em relação ao Shakespeare. Muita gente tem medo de estudar. Então, eu gostaria muito de aproximar as pessoas sem todos esses véus e sem todo esse distanciamento que foi imposto nele, que foi construído em cima dele. 





Teve algum momento que te desanimou?  
A literatura ainda é um tipo de arte de criação muito elitizada, e eu eu não podia ser mais contra em relação a isso, eu acho muito nocivo. Inclusive, sinto que desvaloriza a própria literatura. E isso amplia não só para todas as camadas sociais que a literatura precisa chegar, mas também para todos os gêneros. Eu fiquei muito impressionada quando eu fui fazendo essa pesquisa ao longo de tantos anos, vendo a quantidade de livros escritos por homens e a pouquíssima quantidade de livros escritos por mulheres sobre Shakespeare ou personagens femininas.


TERCEIRO ATO  

Ao se deparar com um cenário sem tantas autoras ou valorização das personagens femininas de Shakespeare, Nara Vidal reuniu seus anos de estudo, pesquisa e dedicação em seu novo livro “Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare’’. A edição é dividida em cinco atos, inspirados em elementos da natureza (fogo, ar, água e terra) e associados a 15 personagens femininas. Ao longo dos capítulos ilustrados por colagens da artista Marcia Albuquerque, há camadas e contextos aprofundados sobre Julieta, Cleópatra, Catarina, Lavínia e Tamora, Ofélia, Desdêmona, Sycorax e as Bruxas, Cordélia, Goneril e Regan, Portia, Lady Macbeth e Viola. 

Quando decidiu fazer o livro “Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare’’?
Acho que eu não decidi fazer o livro, foi uma coisa que foi se construindo em mim, pela minha experiência como leitora e indo muito às peças. Ao longo dos anos, por meio dos meus estudos e das minhas observações, eu fui me interessando muito naturalmente por essas personagens femininas. 





Como foi o processo de estudo sobre as personagens presentes no livro?
A seleção das personagens foi curiosa, porque são muitas. Eu tive que selecionar algumas, peguei quase todas das tragédias e poucas de comédias. Então a seleção foi feita assim, muito a partir de do meu próprio gosto, partindo que eu mais gosto de estudar o que eu mais gosto de ver das personagens. 

O que mais te surpreendeu nesse processo de descobertas e estudo para o livro? 
O que mais me surpreendeu, e ainda surpreende é exatamente esse infinito de possibilidades dessas mulheres. Eu começo a ler e fico muito impressionada com o teor atual dessas mulheres, com as questões atuais que elas trazem para gente, questões que podemos transformar daquele tempo para os nossos dias de hoje. Essas personagens nos fazem pensar de forma política, de forma feminista, de forma antirracista. É tão interessante a gente pegar esses elementos e trazer para nossa vida. Eu acho que é essa ponte, essa forma de atravessar a obra de Shakespeare e trazer para cá, para os nossos dias, para as nossas referências e para as nossas literaturas. 

Tem alguma personagem que se identifica mais?
Eu não me identifico com nenhuma delas diretamente, mas com todas, eu acho que elas trazem elementos que são muito humanos. Então a gente se encontra nelas. Em algum momento a gente tropeça nelas. Em algum momento elas estão ali, mostrando coisas que são nossas.





Tem alguma dica para quem deseja começar a ler Shakespeare? Por qual livro começar? 
Para quem nunca leu nada de Shakespeare, um bom começo pode ser “A megera domada” ou “A Tempestade”. Em seguida, passar para “Rei Lear” , “Macbeth” e “Hamlet”. 

Por que as mulheres nunca foram tão estudadas como os personagens homens das obras de Shakespeare
Há toda uma questão de herança cultural que nós temos e de falta de acesso às universidades, um analfabetismo histórico das mulheres. Então, claro que o que os homens quiseram falar sobre eles, falaram. Mas há muita falta de livros sobre mulheres shakespearianas, e eu acho que cada vez mais esse mundo vai se abrindo. Ainda bem, porque estamos em atraso e precisamos correr atrás desse prejuízo, porque tem muita coisa interessante para ser lida, tem muita coisa interessante para ser escrita, principalmente sobre essas mulheres. 

* Estagiária sob supervisão do editor João Renato Faria

Mulheres na obra

•  JULIETA   (Romeu e Julieta - 1595)
•  CLEÓPATRA   (Antônio e Cleópatra - 1606)
•  CATARINA   (A megera domada - 1590)
•  LAVÍNIA E TAMORA   (Titus Andronicus - 1591)
•  OFÉLIA   (Hamlet - 1599)
•  DESDÊMONA   (Otelo - 1603)
•  SYCORAX e as BRUXAS  (Macbeth e A Tempestade - 1606 e 1610)
•   CORDÉLIA, GONERIL E REGAN   (Rei Lear - 1605)
•   PORTIA (O mercador de Veneza - 1596)
•   LADY MACBETH   (Macbeth - 1606)
•   VIOLA   (Noite de reis - 1601)

Lançamento

• “Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare’’ 
Data: Neste sábado (23/9)
Horário: 14h 
Local: Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi)

Depoimento

"Nara e eu estamos desde 2015 amadurecendo a ideia de um projeto editorial juntas. Shakespearianas nasceu do desejo de reacender essas personagens atemporais do maior e mais genial dramaturgo que já existiu. Mulheres seculares que ainda têm tanto a nos ensinar e a nos dizer hoje em dia. 





Com base na pesquisa e narrativa da Nara, coube a mim na edição junto à Maíra Nassif pensar a estrutura do livro, que, dividido em 5 atos, trazem em cada capítulo as ilustrações da Marcia Albuquerque ressaltando a natureza selvagem dessas mulheres a partir dos elementos fogo, água, terra e ar. 

Compartilhei a ideia de uma linha do tempo com a Nara, que a desenvolveu com informações e curiosidades não apenas sobre Shakespeare, suas peças e personagens, mas também deliciosas vivências ligadas ao Bardo. Fizemos esse conteúdo em formato de pôster. Como diz a Nara, este é um livro livre de rótulos. Shakespeare e suas heroínas já sabiam que nós, mulheres, também não cabemos em rótulos."

Michelle Strzoda, editora