Jornal Estado de Minas

PENSAR

Ensaios analisam lirismo e observação social de Manuel Bandeira



Cassiana Lima Cardoso
ESPECIAL PARA O EM


“Sou poeta menor, perdoai”, escrevia o poeta de Pasárgada em versos endereçados ao pai, que o queria arquiteto, no belo poema “Testamento”, publicado no livro “Lira dos Cinquent’anos”, em 1940. Nesse poema, bem de acordo com seu olhar acurado para as miudezas do cotidiano, o escritor, que compôs a tríade dos poetas mais destacados da fase heroica do modernismo - sendo os outros Mario e Oswald de Andrade - faz um balanço poético de sua trajetória. 





Dos três, talvez por inabalável paixão de quem escreve essa resenha, seja Manuel Bandeira aquele que tenha feito valer por mais tempo o seu legado. Ele, indiscutivelmente, apesar de sua “Nova Poética”, o poeta mais terno de sua geração, que, mesmo nos seus poemas de revolta, “vi ontem um bicho, na superfície do pátio” IN: O Bicho (...), nos revela sensível e aguda fotografia social com pleno domínio de seus recursos. 

Bandeira é aquele a que chamamos por mais longa fase de nossas vidas (ou pela vida inteira?) de poeta de cabeceira. Dele, não há quem não saiba uns versos de cor, no sentido estrito da expressão, de coração - perdendo, talvez, somente para Gonçalves Dias e sua “Canção do Exílio”. Afinal, quem não quis fugir para alguma Pasárgada, nos momentos de agonia e sofrimento, não temeu a indesejada das gentes ou se maravilhou com seu paraíso erótico das Três Mulheres do Sabonete Araxá?  

Mas qual seria o legado de Bandeira, cem anos após a Semana de 22, efeméride que, a despeito de seus entusiastas, teve sua validade posta à prova no ano passado? A essa pergunta, responde o heterogêneo volume de ensaios organizado por Rafael Fava Belúzio, “Sou poeta menor, perdoai: Manuel Bandeira pela crítica contemporânea” (Alameda).

A maioria das investidas de análise ainda resgata da fortuna crítica de Bandeira três de seus principais comentadores, revitalizando categorias críticas por eles engendradas: Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido e, principalmente Davi Arrigucci Jr. O estilo humilde, da leitura de Arrigucci, o sermo humilis de Auerbach, são “estruturas em que o mínimo, o múltiplo e comum se abrem a flor do espaço mais imenso”, escreve Belúzio, confirmando que o sublime, em Bandeira, comparece ao rés do chão. Junto às ruínas, por entre frestas; junto às coisas descartadas, desprezíveis, corriqueiras e/ou mais prosaicas, está a fina flor da poesia. 





  Aliás, lirismo confirmado pelo ensaio de Marcia Regina Jaschke Machado, que citando o próprio autor de “Libertinagem”, “Acho que sou mais lírico que poeta”, escreve a partir da correspondência com Mario de Andrade, trazendo curioso episódio em que mais lírico dos líricos aponta um derramamento gongórico em poema do autor de “Paulicéia Desvairada”.

Joelma Santana examina a correspondência dos ‘primos’ pernambucanos, João Cabral de Melo Neto e Bandeira, no qual cada um discute a própria poética em missivas, que muito enriquecem o leitor interessado nos processos de composição de dois poetas tão díspares, ainda que próximos, cada um com sua pujança e singularidade.  

Elisabete Barros abre o volume com o olhar voltado para a produção do Bandeira cronista, “grande observador da vida e amante dos dias perdidos”, iniciando o itinerário crítico a partir de uma faceta menos explorada do poeta, mas igualmente pertinente e inventiva, além de enfatizar como o autor de “Belo Belo”, um arguto observador da produção artística de sua época, não se restringiu à literatura, mas a diversos outros campos da arte, em uma escrita eivada de energia poética. Poesia condensada, às vezes aforismo, inteligentemente desfiada e modulada em ousado ensaio em forma de fragmento, de autoria do organizador do livro, intitulado “Opus 10: ensaio desentranhado”, em que Belúzio extrai de “Flauta de Papel” e outros escritos em prosa, a poesia que habitava a urdidura de toda produção de Bandeira, independente do gênero textual. 

Viviane Vasconcelos também se destaca, trazendo um Bandeira que atravessou o Atlântico e foi decisivo na formação de, ao menos, dois grandes poetas portugueses: Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, comparando a influência do antigo morador do Curvelo, no Morro de Santa Tereza, a de Fernando Pessoa, na Literatura do outro lado do Atlântico. 





A infância, em Bandeira, também é retomada em diversos ensaios. Os tempos de criança em Petrópolis, no morro de Santa Teresa, em Pernambuco. Entretanto, mais do que a infância como representação, no caso do poeta, os ensaios apresentam a percepção infantil como ferramenta discursiva que movimenta um modo de fazer poético, resgatando o olhar primeiro, o espanto e o reencantamento diante das coisas do mundo, ao lidar com uma memória ativa, que presentifica o passado, lugares e personagens.  

Há um interessante texto de Pablo Rocca sobre tradução na America Latina, como tradutor de Borges e amigo de Pereda Valdés, que o traduziu no Uruguai, jogando com os termos contrabando e importação para analisar como se deu esse intercâmbio.  

“Emoção poética”

E como se já não fosse o suficiente, o artigo de Luís Bueno, “Contingente permanente”, valeria, só ele mesmo, o livro. Com fôlego investigativo e leitura apurada, o texto lança novas luzes ao espaço ocupado pela poesia tanto nas “Crônicas da província do Brasil”, Flauta de Papel, como em coletânea publicada no último ano de vida do poeta, “Colóquio unilateralmente sentimental”. O mérito do pesquisador está em buscar essa “emoção poética” nas crônicas de Bandeira de forma original, seja citando personagens anônimos da época, seja trazendo à cena poetas que não são citados comumente como seus interlocutores, como Ascenso Ferreira ou Febrônio Índio do Brasil. 

A análise do poema “Noite morta” de Bueno, um dos prediletos de Bandeira, apresenta uma leitura competente do jogo melancólico que se constrói na poética do autor de “Estrela da tarde”, jogando com os opostos complementares, para dizer, dialeticamente, que a vida que poderia ter sido e não foi, foi paradoxalmente “cheia de tudo”, no jogo de presença/ausência que sua poética encena. 

Bandeira, que viveu a epidemia de gripe espanhola, perdeu a amada irmã nesse acontecimento histórico; acompanhou a ascensão do nazismo e do fascismo, e viveu com as limitações de um tuberculoso os anos vinte do século passado, ainda tem muito a nos dizer com sua poesia moderna e eterna. Não há o que perdoar, a publicação da editora Alameda comprova que Bandeira é nosso contemporâneo, e há muito ainda a se desentranhar de sua produção.  

Cassiana Lima Cardoso é escritora e professora de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ)

• “Sou poeta menor, perdoai: Manuel Bandeira pela crítica contemporânea”
•  Organização de Rafael Fava Belúzio
•   Alameda
•  254 páginas
•  R$ 74
•  Lançamento neste sábado (23/9), de 12h às 15h, na Papelaria Mercado Novo (Loja 1167 – Corredor i – Mercado Novo – Av. Olegário Maciel, 742, Centro). No mesmo local, lançamento de “Opus 10: ensaio desentranhado”, de Rafael Fava Belúzio