JULIANA PAUTILLA
ESPECIAL PARA O EM
“Vestido de noiva”, de Nelson Rodrigues, por Ione de Medeiros, surpreende. Montar Nelson hoje, mesmo sendo considerado um dos maiores autores nacionais, não é uma tarefa fácil, sabendo deste homem tão controverso com suas posturas machistas, alinhadas com a ditadura militar. Como sustentar e problematizar essa contradição? Fica a pergunta ecoando também para outros autores da dramaturgia nacional. O que mais me motivou a assistir a peça foi prestigiar o Oficcina Multimédia de Belo Horizonte, grupo dos mais longevos de Minas, que já havia feito uma ótima montagem de “Boca de ouro” em 2018, com apontamentos políticos inte- ressantes, uma encenação impecável, irônica e elenco afinado. A caminho do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo, em um domingo chuvoso, fui me perguntando o porquê de montar esse texto que tem todos os clichês heteronormativos e seu intrínseco familiarismo.
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NA FRONTEIRA DOS SENTIDOS
Nelson-Ione brilhantemente poetizam: fusão de marcha-fúnebre com nupcial, buquês e coroas de flores, branco e preto, amor e luto, acidente e crime, véus que encobrem e revelam, divã e maca. As ambiguidades são parte. Já dizia Sigmund Freud: “a incapacidade de tolerar a ambiguidade é a raiz de todas as neuroses”. E Ione brinca com essas ambiguidades, sem dar destino a personagens fixados, levando a dimensão do delírio à criação de jogos em coro, duplos, trios e sem dar tanta importância ao que a dramaturgia poderia apontar como situações reais ou imaginárias. Os sentidos vão perdendo suas fronteiras. À medida que a mulher vai sendo amputada na mesa de cirurgia da dramaturgia, seus pedaços ganham a liberdade de voar em uma potência fantasmática, melhor que carregar o fardo da submissão imposta. Se Nelson não disse isso, Ione aponta. Duplica Alaíde, que se torna Lúcia, que se torna Alaíde (condensações) e transforma Madame Clessi em uma espécie de psicanalista irônica com um freudismo de cabaré, permitindo que as fantasias das Alaídes venham à tona.
O jogo de triangulação – Alaídes e Clessi – deixa em suspenso uma ideia interessante: Alaíde pode ser uma criação imaginária de Lúcia, para que esta consiga dar conta de seus delírios se livrando da culpa. Uma irmã imaginária que faria tudo que era negado a ela realizar: brigar, disputar, amar, matar, trair, desejar outra mulher, desejar ser Clessi. A agressividade socialmente recalcada na mulher e aceita no homem (que ironicamente na peça é bom e “banana”) pode então, existir. Se Nelson não pensou nisso, foi talvez nessa peça tão cheia de furos na racionalidade, que deixou sua virilidade escorregar.
A atualização é uma forma muito usada para remontar cânones. Mas essa não parece a preocupação do grupo. Ao se interessar pela narrativa associativa e atemporal, a dramaturgia ganha mais leituras possíveis hoje. Mesmo diante das mudanças e da chacota contemporânea à instituição casamento, o sistema da família nuclear branca heteronor- mativa do Rio de Janeiro de 1940 não cessa de se reiterar em 2023. Ainda há muito o que elaborar nesse embate às normativas da neu- rose estrutural patriarcal.
Voltando de uma turnê pelos CCBBs, a peça vai ganhar uma nova temporada, em Belo Horizonte, para comemorar os 80 anos da estreia de “Vestido de noiva”, em 28 de dezembro de 1943. Ione de Medeiros é uma diretora que deve ser aplaudida e reverenciada, como são tantos outros encenadores nacionais da sua geração. Juliana Pautilla é artista transdisciplinar, diretora e dramaturga. Graduada em Músi- ca/UEMG, mestre em Artes Cênicas/UFMG, especialista em Análise de Movimento/Faculdade Angel Vianna. Psicanalista em percurso: REM (Rede para Escutas Marginais), ALCEP (Associação Livre Centro de Estudos em Psicanálise) e Núcleo de Subjetividades da PUC-SP. Inter relaciona arte, colonialida- de e psicanálise através de múltiplas escritas, clínica, orientações e gestão em residências artísticas.