Jornal Estado de Minas

MAIS HISTÓRIAS DE UMA MESMA FÉ

Histórias e lições da Bíblia em 'formato apócrifos'

A leitura da Bíblia permite descobertas, leva a a reflexões, conduz a outros tempos, traz conhecimento e eleva o espírito, independentemente da crença de quem tem o livro sagrado dos cristãos diante dos olhos. No Antigo Testamento e no Novo Testamento, está a história do Povo de Deus, contada em 73 livros para os católicos e 66 para os protestantes. Página após página, de Gênesis ao Apocalipse, as narrativas demandam atenção e estudos para melhor compreensão da “Palavra”.





Mas há também os livros apócrifos, aqueles que não fazem parte do cânone oficial da Bíblia e podem revelar mais sobre a história sagrada, incluindo aspectos sobre infância, adolescência de Jesus e aparência física na idade adulta, a vida de Maria, sua mãe, e de São  José, o pai adotivo, e a Paixão de Cristo.
 
Para mostrar novos ângulos, alguns surpreendentes, chega às livrarias “Evangelhos apócrifos – gregos e latinos”(Companhia das Letras) resultado do trabalho de pesquisa e tradução do português Frederico Lourenço, doutor em línguas e literaturas clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ambas em Portugal.
 
Segundo Frederico Lourenço, “a principal vantagem de ler os evangelhos apócrifos é a realização histórica de que, afinal, o cristianismo não nasceu coeso e unitário, mas sim variado e diversificado”.





A edição bilíngue reproduz as fontes originais e traz comentários crítico-históricos sobre inúmeros temas. O pesquisador explica que até a imposição de uma doutrina única no século 4, circulavam, em paralelo aos evangelhos considerados canônicos, outros textos que apresentavam a figura de Jesus Cristo sob diferentes perspectivas. Chamados de apócrifos – entendidos muitas vezes como heréticos, falsos —, esses evangelhos levam esse nome pela acepção clássica de Eurípedes, Heródoto e do próprio Novo Testamento: são secretos, escondidos.
 
Uma parte se refere a ditos que Jesus teria proferido em contexto privado, apenas a seus apóstolos. A outra parte, refere-se à biografia anterior ao Filho de Deus. Nesta edição, estão reunidos evangelhos de Tiago, Tomé, Filipe, Maria, Pedro, Nicodemos, além de fragmentos sobre a infância e a paixão de Cristo, a narrativa de José de Arimateia, o relatório de Pilatos, entre outros.
 
“Muitos desses textos permaneceram desconhecidos até a segunda metade do século 20, e seu conteúdo ainda suscita controvérsia. No entanto, os evangelhos apócrifos constituem um estímulo para repensarmos, hoje, o cristianismo de forma menos dogmática e mais inclusiva.”




 
Leia, a seguir, a entrevista do professor Fre-derico Lourenço ao Pensar do Estado de Minas.
 
Minha primeira pergunta é exatamente a mesma que abre a “Nota introdutória” da obra: Porque é que o termo “apócrifo” evoca, de imediato, os sentidos pejorativos de “falso” e de “herético”? Como o senhor escreve, nem toda a escritura apócrifa é herética...

Há muitos textos nesta nova edição dos “Evangelhos Apócrifos”que são perfeitamente ortodoxos. Os evangelhos sobre a infância de Jesus não contradizem a fé ortodoxa, embora relatem acontecimentos que não estão no Novo Testamento. Os autores desses textos optaram por um estilo de narrativa que é muito parecido com os primeiros capítulos de Mateus (o canônico, não o Pseudo-Mateus apócrifo) e Lucas. Os evangelhos mais controversos são os de Tomé e de Maria Madalena, que nunca poderiam ter feito parte do Novo Testamento. Depois há o caso curioso do chamado Evangelho Secreto de Marcos, que muitos estudiosos do cristianismo consideram uma falsificação. Eu próprio não tomo posição nessa controvérsia, mas dou os elementos da questão aos leitores no comentário ao texto para eles poderem formar uma opinião própria.
 
A palavra “apócrifo” pode ser entendida também como “secreto”, “escondido”. Por que os textos contidos no livro são considerados assim? O que existe neles que não pôde ser revelado?

Eu penso que os primeiros cristãos, no mundo grego, já estariam pré-dispostos a imaginar que Jesus não teria revelado toda a sua doutrina publicamente, porque o mundo grego estava cheio de cultos pagãos em que o “mistério” era fundamental, e os seguidores desses cultos estavam impedidos de revelar os segredos. As diferentes seitas do cristianismo (gnósticas e outras), antes da uniformização

da doutrina no século 4, operavam segundo essa lógica de só elas estarem na posse dos en- sinamentos “escondidos”de Jesus. Os evange- lhos apócrifos, em que isso se pressente mais,
são os de Tomé (encontrado em Nag Hammadi, no Egito) e o de Maria Madalena. Esse tem o fator surpreendente de apresentar uma mulher como a discípula a quem Jesus revelou sua doutrina mais secreta.




 
Certamente, a pesquisa para essa obra demandou muito tempo e fôlego, pois são quase 700 páginas, com textos em grego, latim e português. Como foi seu trabalho, e de que forma o senhor reuniu esses textos?

Fui imaginando este livro aos poucos, logo desde o momento em que me dediquei o estudo dos evangelhos canônicos. Julguei necessário propor uma tradução dos evangelhos apócrifos para o português, para os interessados na história do cristianismo verem as semelhanças e diferenças entre as duas categorias de evangelho. Fui lendo os textos e a bibliografia para poder ter uma ideia de como organizar minha edição. A princípio, pensei incluir apenas textos em grego, mas depois vi que havia tantos textos interessantes em latim que seria pena deixá-los de fora. Esforceime para conseguir entender um pouco de copta (justamente por causa dos evangelhos de Tomé e Maria Madalena, de que temos em copta um texto mais completo do que em grego), mas percebi que, na minha idade, já é muito difícil aprender uma língua nova. Fiquei-me somente por estes dois evangelhos na versão copta e não me aventurei a abordar o Evangelho de Filipe, a não ser o único fragmento em grego.
 
O que a leitura de “Evangelhos apócrifos” traz de diferente para quem já leu a Bíblia, e o que acrescenta/ilumina para quem é cristão, ateu ou agnóstico?

A principal vantagem de ler os evangelhos apócrifos é a realização histórica de que, afinal, o cristianismo não nasceu coeso e unitário, mas sim variado e diversificado. A unidade e a coesão vieram com a imposição política da religião cristã no século 4, devido ao apoio do imperador Constantino e dos seus sucessores. O clero mais próximo do imperador obteve os meios para suprimir outras versões paralelas do cristianismo então em voga: o cristianismo “certo”ficou a ser só o catolicismo. Para quem lê a Bíblia como cristão, os Evangelhos apócrifos mais ingênuos sobre a infância de Jesus e de Maria não trazem nada que colida com a fé cristã: a mentalidade que lhes subjaz é a mesma que está presente nos primeiros capítulos dos evangelhos canônicos de Mateus e de Lucas. De resto, parece provável que o Evangelho de Tiago e de PseudoMateus se tenham inspirado nas narrativas canônicas sobre a infância de Jesus, acrescentando-lhe mais episódios e enredos. O agnóstico e o ateu se interessam por esses textos por motivos históricos e, nesse âmbito, encontrarão aqui elementos importantes. O mais significativo para mim é a presença tão clara de ódio contra os judeus em muitos desses textos: esse ódio levaria a uma sucessão confrangedora de tragédias. Bem sabemos os crimes contra a humanidade que foram cometidos na Europa durante o nazismo.

Nas pesquisas para “Evangelhos apócrifos”, o que mais o surpreendeu? Havia algo que o senhor nunca tinha lido?

Quando parti para o trabalho neste livro já conhecia todos os textos. A minha maior surpresa foi deparar com o contexto em que Epifânio de Salamina, no século 4, cita o fragmento grego do Evangelho de Filipe. As outras edições que conheço dos Apócrifos omitem esse contexto, em que Epifânio afirma que o Evangelho de Filipe era o favorito de uma seita cristã em que os homens tinham sexo com outros homens, aparentemente sem verem nisso uma contradição com a doutrina cristã por eles seguida. Achei isso interessante, porque se debate hoje se um homem que está num relacionamento sexual com outro homem pode ser católico praticante e receber os sacramentos. Pelo visto, houve cristãos nos primeiros séculos do cristianismo que já tinham encontrado uma solução para esse problema. Também é preciso ver que alguns cristãos gnósticos se opunham ao sexo procriativo, mas aceitavam atos sexuais sem finalidade procriativa. O cristianismo ortodoxo que se impôs depois viu a situação ao contrário: o
único sexo permitido tem de ter finalidade procriativa.




 
Quando se leem os textos, não é difícil ficar imaginando como seria a Bíblia com todos esses evangelhos. Há textos que entram em choque com os textos canônicos?

Sim, mas também há textos canônicos que entram em choque com outros textos canônicos. A Bíblia só é uma coletânea de textos com coerência e unidade de doutrina na mente dos cristãos conservadores, que se servem dos sofismas da apologética para “demonstrar” que não há contradições na Bíblia. Os Evangelhos canônicos têm passagens que são contraditórias entre si; o mesmo se aplica às cartas de Paulo.
 
O senhor explica que “o Novo Testamento” contém cartas paulinas que provavelmente não foram escritas por Paulo. O que distingue a escritura apócrifa da canônica?

A ideia de que as cartas transmitidas de Paulo não foram todas escritas pelo apóstolo estabeleceu-se no século 19. Atualmente, aceita-se que sete delas foram escritas por Paulo, mas mesmo essas estão sujeitas a várias dúvidas. Abordo esse problema na introdução ao volume do Novo Testamento (na Companhia das Letras) que contém as cartas de Paulo.
 
Os textos apócrifos falam sobre a infância e a adolescência de Jesus, um período que fica “escondido” nos textos canônicos. Por que essa fase da vida de Jesus é quase “um segredo”?

Pessoalmente, não penso que tenha sido um segredo, porque me parece mais provável que essas histórias sobre a infância tenham sido inventadas bastante tempo depois da vida terrena de Jesus. O mais provável é que ninguém sabia ao certo como tinha sido a infância de Jesus: o fato de Mateus (canônico) achar que Jesus nasceu em Belém, porque os pais eram munícipes dessa cidade, e que foram depois morar em Nazaré mostra que pouco se sabia sobre José, Maria e Jesus (dado que Lucas dirá que eles eram moradores de Nazaré antes de Jesus ter nascido). Um dos Apócrifos diz que eles eram moradores de Jerusalém. Paa mim, o Evangelho que nos leva mais perto do Jesus "real" é o de Marcos, que nada nos diz sobre a infância de Jesus, porque provavelmente nem Marcos sabia alguma coisa sobre esse tema. O que temos sobre a infância de Jesus nesses textos é certamente inventado.




 
O senhor diz que esses “textos marginalizados” ajudam a vislumbrar “o modo fascinante e diferenciado como as várias gerações entenderam e veneraram a figura de Jesus”. Acredita que ainda há muito para ser descoberto e estudado?

Há sempre a esperança de que se encontre o texto completo do Evangelho de Maria Madalena. Não seria impossível que aparecesse numa expedição arqueológica no Egito, por exemplo. Ninguém esperava que aparecessem os manuscritos judaicos do Mar Morto, nem que se encontrassem os textos cristãos de Nag Hammadi, em 1945. A qualquer momento podem surgir novos textos dos primórdios do cristianismo. Não acredito que novos textos venham a alterar o entendimento do cristianismo ortodoxo, mas podem trazer novas facetas para o entendimento dos outros cristianismos que existiram em paralelo como aquele a que depois se chamou "o certo", o ortodoxo.
 
O senhor considera os textos apócrifos mais inclusivos? Maria Madalena, por exemplo, é chamada de discípula.

Maria Madalena e Salomé recebem o estatuto de discípulas em alguns evangelhos apócrifos. Isso me parece imensamente inclusivo. É preciso ver que a palavra "discípula" nunca ocorre nos evangelhos canônicos.
 
Frederico Lourenço, tradutor de Evangelhos Apócrifos (gregos e latinos), e foto da capa do livro. (foto: Divulgação)
 
 
 “EVANGELHOS APÓCRIFOS”
Tradução de Frederico Lourenço
Companhia das Letras
680 páginas
R$ 74
R$ 154,90/e-book: R$: 49,90