Existem obras da literatura mundial que te fisgam, te incitam ou te chocam logo em sua primeira linha. “A metamorfose” (1915), de Franz Kafka (1883-1924; nascido em Praga, na atual República Tcheca, mas que naquela época pertencia ao Império Austro-Húngaro), é uma delas: “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (L&PM Pocket). Outro caso é “Crônica de uma morte anunciada”(1981), do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014): “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo”. Diferentemente do teor sobrenatural, atrelado a temas como existencialismo e sociedade (com crítica atemporal), de “A metamorfose”, e da narrativa sustentada pela veia jornalística de García Márquez em “Crônica...”, indo muito além do “spoiler” do começo (e também com crítica atemporal à sociedade), e sem o status de clássico que esses dois exemplos ostentam (o teste do tempo é que vai elegê-lo ou não com tal título), “Era o céu”, de Sergio Bizzio, também pode ser enquadrado na categoria de “livros com primeira frase emblemática” (e com méritos até a última).
“Quando cheguei, dois homens estavam estuprando minha mulher”. É assim, de forma crua e arrebatadora, que o argentino inicia o romance de 2007 e que ganhou uma edição para o mercado brasileiro, com tradução para português, feita por Wilson Alves Bezerra, e lançado pela Iluminuras em 2022. Em 2016, a obra recebeu uma versão adaptada para o cinema, batizada no Brasil de “O Silêncio do céu”, com Bizzio como um dos roteiristas, direção do paulista Marco Dutra e contando com a carioca Carolina Dieckmann e os argentinos Leonardo Sbaraglia e Chino Darín no elenco.
“Era o céu”, o livro, traz o ponto de vista do protagonista (e narrador da trama) com relação ao estupro de Diana, sua companhei- ra e mãe de seu filho, Júlian. “Fiquei paralisado, todo torto em posição estranha, com as pernas a meio caminho entre um passo e outro”, diz ele, que é roteirista de TV e cinema – esta, aliás, é outra faceta de Bizzio. Tomado pelo pavor (embora não seja apenas isso) e sentindo-se impotente para agir, o marido de Diana acaba não fazendo nada além de observar a cena. Depois, vive com o dilema de não contar para a esposa que viu o momento em que ela foi violentada e o fato de que ela não lhe conta o que acontecera.
Aos poucos, o narrador vai esmiuçando capítulos de sua vida e que se conectam com o início da história do livro. Ele e Diana foram casados durante uma década, se separaram e, dois anos depois, reataram a relação. E aí vem o caso do estupro, o silêncio da esposa e o sofrimento dela para lidar com esse episódio. “(...) nos deitamos e colocamos o vídeo do dr. Comas. Diana encostou a cabeça no meu ombro e disse num sussurro: ‘Eu gosto que você esteja aqui’. Eu sabia. Quando me virei para ela e Diana me abraçou com força, também soube que além de me abraçar, ela estava me impedindo de avançar. Foi um momento estranho para mim e certamente terrível para ela”.
Medos
A narrativa segue quase como um diário. Isso porque o personagem principal passa grande parte da história falando de si, de seus medos e suas fobias – o medo de avião é uma das principais e também funciona como metáfora. E novamente de forma paula- tina, as peças de um quebra-cabeças vão se encaixando no que tange à falta de atitude de um homem, de 43 anos de idade, que se vê imóvel diante do estupro de sua esposa e que, mais para o terço final do livro, busca vingança. O roteirista chega ao ponto de enumerar uma lista de medos (“fora de ordem” ele frisa), que preenche quase uma página e meia. Entre eles estão: solidão, elevadores, mar, altura, barcos, miséria, armas, dentistas, polícia, violência, velhice, impotência, ladrão, estádios de futebol, dentre tantos outros.
A maior parte das informações que ele fornece ao leitor sobre sua vida datam do período em que ficou separado de Diana. Durante esses dois anos, o roteirista namora Vera, uma mulher bem mais nova que ele, em meio a um turbilhão de sentimentos nutridos por ambas as partes. Há momentos em que o homem se vê desesperado com as suspeitas de que Vera não estaria mais a fim dele. O desfecho dessa saga, porém, reserva o contrário, com ele abandonando-a e voltando para Diana. Em vários momentos, aliás, as fobias e os medos se tornam essenciais para o tom visceral da narrativa.
Mesmo sob um clima deveras pesado – psicologicamente falando –, “Era o céu”utilizava alguns elementos cômicos. Porém, mesmo eles cumprem uma função a mais do que a de simplesmente tentar arrancar algum riso ou sorriso do leitor (por causa de sua acidez, pode não acontecer). “O humor que surge na trama tem a função de nos permitir, com leveza, afundar mais um pouco em uma realidade atroz que nada tem de reconfortante”, destaca o tradutor e poeta Wilson Alues-Bezerra, no prefácio da edição da Iluminuras. “Ao acompanhar a narrativa o leitor se dá conta – atônito – de que nunca imaginara que um romance da vida pequeno-burguesa pudesse ser tão dolorido, que a vida cotidiana do mundo do trabalho e das relações familiares pudesse encerrar tanto fracasso e medo”.
Com relação à obra como um todo, Alues-Bezerra sentencia: “‘Era o céu’, enfim, fala de tradições anacrônicas – o duelo, a vingança – e da impossibilidade de o homem contemporâneo lidar com elas. Mas, ao mesmo tempo, expõe a chaga da atualidade, a outra face da mesma herança: a violência contra a mulher, praticada por homens igualmente tão bem-sucedidos quanto o protagonista e tão terrivelmente fracassados como ele”.
Filme
A adaptação para o cinema de “Era o céu” traz diferenças em relação ao livro. O sentimento de vingança nutrido pelo homem, de querer fazer justiça com as próprias mãos, sob a atmosfera de um thriller, dita grande parte da narrativa; o relacionamento do protagonista com Vera é praticamente reduzido a uma cena; mais para o fim da obra cinematográfica, a esposa assume o papel de narra- dor; o casal tem dois filhos; e o filme é cen- trado no estupro e no período posterior a ele.
A produção é chilena e brasileira, com o espanhol sendo o idioma predominante. O português é utilizado nas cenas em que Diana (Carolina Dieckmann) e Elisa (Paula Cohen) conversam a sós e quando Diana narra os fatos mais para o fim. Em pouco mais de uma hora e quarenta minutos, o filme possui início e fim tão arrebatadores quanto o livro, mas com recheios diferentes. Nem melhor nem pior: visceral de formas distintas.
Sobre o autor
Sergio Bizzio nasceu em Villa Ramallo, província de Buenos Aires, na Argentina, em 1956. Escritor, dramaturgo, roteirista, diretor de cinema, produtor de TV e vocalista, guitarrista e tecladista da banda de rock Súper Siempre, teve outras obras, além de “Era o céu”, publicadas no Brasil. Entre elas, o conto “Cinismo”, na antologia “Os outros – narrativa argentina contemporânea” (2010, Iluminuras), e o romance “Raiva” (2011, Editora Record).
“ERA O CÉU”
De Sergio Bizzio
Tradução de Wilson Alves-Bezerra
Editora Iluminuras
216 páginas
R$ 72