Jornal Estado de Minas

FORMAS DE HABITAR O MUNDO

Livros discutem vivência urbana em reflexões de arquitetos e artistas

 

Belo Horizonte nasceu, após acaloradas discussões, na prancheta dos engenheiros, e, ao longo dos quase 126 anos de sua história, são muitos os profissionais que se dedicam a pesquisas sobre a metrópole, ainda mais por ser a primeira cidade planejada, no país, para se tornar capital, no período republicano. A arquitetura, com seus vários estilos, em contraste com a Serra do Curral, símbolo local, tem lugar garantido nos estudos, e, entrelaçada com o urbanismo, as memórias, a filosofia, a cultura e a paisagem, em universo amplo, conduz BH às páginas de três livros que serão lançados neste sábado (30), na Quixote Livraria e Café. 





Em publicação da Editora UFMG, da Universidade Federal de Minas Gerais, chegam aos leitores “Genealogia da cidade”, de Carlos Antônio Leite Brandão, “Desvios da arquitetura: imagem e cultura contemporâ- nea”, organizado por Junia Cambraia Mortimer e Eduardo Augusto Costa, e “Paisagem como modo de entender o mundo”, de Laura Beatriz Lage. Os autores contam histórias, trazem ideias, mergulham em experiências pessoais e coletivas para emergir com reflexões e apontar caminhos – valiosos, por sinal, a toda a sociedade, aos gestores, ao leitor de todas as cidades e pessoas que admiram o conhecimento. 

“Genealogia da cidade” cativa logo de cara – tanto pelo conteúdo como pela bonita capa da obra de Carlos Antônio Leite Brandão, arquiteto, doutor em filosofia e professor titular da Escola de Arquitetura da UFMG. O desenho em bico de pena, feito por Cláudio Parreiras Reis, enche os olhos, com os prédios, vias públicas e monumentos de BH abraçados ao Sul, pelas montanhas, e ao Norte, pela Lagoa da Pampulha. 

Em seu livro, Carlos Antônio escreve sobre a “cidade”, nos seus aspectos filosóficos, históricos, culturais, arquitetônicos e urbanos, começando por Jericó, a primeira aglomeração conhecida, que está completando 100 séculos. Ao considerar a “cidade”como a maior invenção da humanidade, ele, no entanto, demonstra preocupação. “A concepção de cidade pode estar sendo ‘desinventada’”. E por quê? “Pode ser que a barbárie soft e hi-tech, que se propaga no início do século 21, requer uma nova maneira de estarmos juntos com outros seres humanos e com o universo que nos cerca”. Essa é a principal razão da pesquisa: “lançar um olhar transdisciplinar e transtemporal para o tema da pólis. Uma avaliação daquilo que constitui a cidade e do que podemos estar abrindo mão”. 





Na conversa com o repórter, o autor ressalta que “a cidade nos liberta”, favorece para que a pessoa seja o que quer ser, abre possibilidades em todos os sentidos. “E permite que a pessoa descortine, vislumbrar novos horizontes, várias potencialidades, despertando o que está latente em nós.”Mineiro de São João Nepomuceno, na Zona da Mata, o arquiteto chegou a BH aos 10 anos de idade: “Meu pai nos trouxe do interior para a capital, e foi aqui que estudei, me formei, fiz amigos, enfim, os horizontes se abriram”, afirma.

Reflexões 

Já a obra “Desvios da arquitetura: imagem e cultura contemporânea” reúne estudos e reflexões de professores universitários e de artistas visuais de cinco unidades da federação: Minas, Bahia, Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. Conforme os organizadores, “o livro-pesquisa apresenta um debate sobre a apreensão do que vêm a ser a arquitetura e suas práticas, demonstrando que a imagem e a visualidade ganharam patamar estrutural para as práticas contemporâneas”. 

Por sua vez, “Paisagem como modo de entender o mundo”, da arquiteta e urbanista Laura Beatriz Lage, aborda, por meio da experiência estética e sensível do ambiente, as possibilidades de (re)integração entre o homem e seu meio a partir da experiência de paisagem. A autora, mineira de Jaboticatubas, na Grande BH, e criada na capital, aborda discussões referentes às mudanças nas paisagens sem relação com o preexistente, com perdas de qualidades ambientais e estéticas, e metodologias de análise de gestão territorial com enfoque paisagístico

Trechos dos Livros

“Genealogia da cidade”, de Carlos Antônio Leite Brandão 


“Na cidade brasileira de onde eu vim, Belo Horizonte, os edifícios e os lugares não permanecem muito tempo. Eles carecem de ‘durée’. Mesmo exemplares significativos de sua história são destruídos, deteriorados ou completamente descaracterizados devido, entre outras coisas, à pressão dos fluxos e da especulação imobiliária e à provisoriedade e desperdício atávicos da cultura do meu país. Essa renovação caótica e sem norte faz de Belo Horizonte uma eterna Poeirópolis, como Salomão de Vasconcellos apelidou quando de sua construção”. 





“A origem da cidade não está na aldeia, no vilarejo, na cidade pequena ou na cidadela. A cidade não é uma aldeia que aumentou de tamanho, de infraestrutura e de população. Se o fosse, eu não teria me sentido tão estranho ao andar na capital belo-horizontina com as botas trazidas dos currais de São João Nepomuceno e da rua lamacenta cortada por um córrego onde eu morei em Juiz de Fora. A cidade nos liberta, mas comporta riscos. Ela proclama e intimida, principalmente aquele que tem miopia, o passo torto e o pé chato. Mas não vale a pena voltar para o mundo mental da província e do curral, da casa grande e da senzala. A cultura da cidade e a cultura do pasto são diferentes, a razão da “pólis”não é a do ventre e do fígado, e o tempo da “urbs”não obedece ao ritmo repetitivo das estações, das ordenhas e das orações”.

“Paisagem como modo de entender o mundo”, de Laura Beatriz Lage


“Na cidade de Belo Horizonte, a forma de conservação, desde a década de 1990, baseia-se na manutenção de ambiências características, e após o estudo das áreas são elaboradas diretrizes para futuros desenvolvimentos. No entanto, devido à grande especulação imobiliária e pressão desenvolvimentista, aliado à desarticulação dos órgãos de patrimônio e planejamento urbano, mesmo que essa abordagem supere a tradicional conceitualmente, na prática, a forma de preservação continua a mesma, estática, não se relacionando, muitas vezes, com a abordagem inovadora proposta.” 

“A Serra do Curral, símbolo da cidade, foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1960, e protegida pela Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte, em 1990, tendo ocorrido seu tombamento municipal em 1991. Em 1995, através de um plebiscito promovido pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a Serra do Curral foi eleita com o título de símbolo de Belo Horizonte, concorrendo com a Igreja São Francisco de Assis, Praça da Liberdade, dentre outros. Apesar das proteções existentes, a Serra do Curral desaparece gradativamente dos olhares dos belo-horizontinos. Isso se deve, em grande parte, à pressão política exercida pelo mercado imobiliário e da construção, que muitas vezes se coloca mais forte perante a vontade dos citadinos, contribuindo com uma verticalização quase sufocante de nossas cidades”. 


“Diálogos de memória insurgente – A greve dos peões,1979”, de Maria Beatriz Coelho e Priscila Mesquita Musa, do livro “Desvios da arquitetura: imagem e cultura contemporânea”, organizado por Junia Cambraia Mortimer e Eduardo Augusto Costa


“Depois do desaparecimento forçado do Curral Del Rei para dar lugar à cidade planejada, talvez a temporalidade da ditadura militar tenha sido o período em que a face autoritária do urbanismo e da fotografia se fez mais presente na história do território no sopé da Serra do Curral, na capital de Minas Gerais. O urbanismo e o autoritarismo são termos que em certa medida não se separam, cabe ressaltar aqui. A cidade não é um acontecimento natural, é remodelada pelo poder, sendo que seus espaços geralmente correspondem aos mecanismos de maior ou menor intensidade de dominação.” 

“Em julho de 1979, Belo Horizonte era um grande canteiro de obras, vivia ainda os rebatimentos da explosão (“boom”) imobiliária. A maquinaria das construtoras e da produção de imagens girava a todo vapor, tentava dominar a imagem e o imaginário em relação à cidade, à política, à economia. Gerava concentração de renda e benfeitoria urbana de um lado e atropelava muitas vidas com condições extremas de trabalho e baixos salários, mas também com desapropriações, expropriações, remoções. No entanto, a cortina de fumaça do ‘milagre brasileiro’ já começava a se desfazer no ar. O vazio era sentido principalmente pela população que contribuiu para o suposto crescimento econômico, mas não pôde usufruir dele. Era o tempo do arrocho salarial, da fome, do desemprego, da miséria para uma vasta parcela do ‘povo brasileiro’. Como um grito preso no peito por muitos anos, irrompeu a Greve dos Peões. Quase todas as obras foram paralisadas naqueles dias.