JOCA REINERS TERRON
“Em julho ou agosto de 2020, em pleno confinamento causado pela pandemia de Covid, o editor Natan Schäfer, da independente Contravento Editorial, sugeriu que eu anotasse meus sonhos, pois desejava produzir uma coleção de livros com literatura onírica ocorrida naquele período terrível. Decidi atender ao seu chamado, e por trinta dias permaneci atento à demanda noturna, às vezes despertando mais cedo para anotar algo que já me escapava das mãos como um peixe ensaboado pescado num rio poluído. No entanto, o que fiz foi não ‘literatizar’ a coisa, procurei não conspurcar a linguagem dos sonhos com poesia falsa. Lacan já falou dessa impossibilidade, mas eu, por outro lado, entendo o problema da anotação de sonhos como um problema de tradução: como traduzir algo que nos foi dito numa língua desconhecida, talvez inexistente? O resultado é "Quando sonhamos que sonhamos", acompanhado das figuras sonhadas por Isabel Santana Terron, que sonhava ao meu lado.”
Vinte e um de agosto de 2020
Eu despertava
com meu edredom
em chamas
que se alastravam
pelo quarto
Vinte e três de agosto de 2020
Eu revisava um livro
e atrasava a entrega
do trabalho ao meu chefe
que batia na porta
de casa à minha procura
Eu atrasava a entrega
pois temia que a história
acabasse
A história do livro
era a minha vida
Dois de outubro de 2020
Eu dormia em minha cama
e meu braço caía pela beirada
se esticando pelo abismo
e sumindo na escuridão
sem fundo que envolvia
a cama
Vinte e quatro de outubro de 2020
Aquele eu
que sonhava
não era eu
Era um eu
que se disseminava
em outro eu
Eu não estava
em lugar nenhum