“Posso afirmar que, se não tivéssemos conseguido fazer mais nada na vida, essa amizade de tantos anos, com convívio diário, foi o melhor que podíamos esperar deste mundo. Ela nos faz ter eternamente 20 anos e sinto que me permitirá morrer em paz.”
Fernando Sabino tinha 63 anos quando fez esta afirmação à jornalista Norma Couri, em entrevista publicada em julho de 1987 na extinta revista “Playboy”. Falava sobre a amizade com Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, uma relação “em permanente desentendimento”.
A previsão tinha sido feita muitos anos antes, com Sabino mal acabado de entrar na casa dos 20. "O Hélio, o Otto, o Paulo são os únicos amigos que podem salvar você", escreveu Mário de Andrade, em carta de 1944.
Foi também nesta longa conversa à “Playboy”, e em decorrência da amizade que o mantinha jovem, que o escritor anunciou publicamente seu epitáfio – “Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino” –, escrito em seu jazigo no Cemitério São João Baptista, no Rio de Janeiro. Os outros três “cavaleiros” ali também estão enterrados.
É esquisito, é inacreditável, é antes de tudo tão comovente como nós quatro tivemos ao mesmo tempo a consciência de um instante em suspenso entre o que deixou de ser e o que será de agora em diante
Fernando Sabino, em carta a Hélio Pellegrino
A entrevista foi precedida pela perda do trio de parceiros: Hélio morreu em março de 1988, Paulo em julho de 1991 e Otto em dezembro de 1992.
“Cartas na mesa” (Record, 2002) foi o volume que Sabino organizou com 50 anos de correspondência com o trio (134 cartas enviadas de 1943 a 1992), seus “amigos para sempre”, como escreveu na apresentação da obra. Conheceu Hélio aos 6 anos, no final da década de 1920 – foram colegas de jardim de infância, de grupo e de ginásio. Otto apareceria em 1933, em um encontro de escoteiros, e Paulo já na juventude, “de pilequinho”, em uma festa em 1940.
“Conversávamos os quatro (ou três, para falar mal do ausente) dia e noite sem parar, em Belo Horizonte e depois no Rio. Rebeldes, inconformados, predominava entre nós a irreverência. Éramos contra as convenções e conveniências, a começar pela vocação literária que nos unia”, escreveu Sabino.
Professora do Departamento de Letras Modernas da UNESP-Assis, Gabriela Kvacek Betella concluiu em 2005 pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) sobre a obra dos quatro. Para ela, o primeiro ponto que os une “é, tecnicamente, o gosto pelo conhecimento e pela expressão”.
Em um dos artigos resultantes do pós-doc, “Os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse e suas biografias vicárias”, Gabriela analisou a obra do quarteto na escrita de perfis. “É uma infinidade de perfis, o Fernando escreveu bem mais do que os outros. Mas todos se dedicaram às figuras pelas quais eram ligados, por pura admiração ou por amizade.”
Por meio da pesquisa, Gabriela faz a seguinte observação: “À medida que escreviam, eles acabavam falando deles mesmos. Há toda uma vaidade, algo como eu preciso dizer que era amigo dele”. Ela cita um perfil que Sabino fez sobre Oscar Niemeyer, “Apenas um homem que vive”.
“A certo momento ele escreve ‘estamos aqui, lado a lado, na rua no Rio de Janeiro’. Isto faz com que não só o perfilado, mas o escritor também se torne admirável.” A professora chama a atenção que a escrita era tão sutil, “que você ‘cai’ na dele, não percebe a vaidade de quem está escrevendo.”
Jornalista só de vez em quando
Para ela, dos quatro, foi Sabino o único que quis ser um grande escritor. “Ele queria ser consagrado, tanto que, no início da carreira, tinha medo que o confundissem com jornalista. Era como se de vez em quando fosse jornalista, mas era um escritor.”
Quando, em 2003, Gabriela decidiu estudar a obra dele e de seus parceiros, ouviu de sua própria orientadora que enfrentaria algum preconceito. “Fernando Sabino, principalmente, não entrava na academia. Tinha a carga de ter escrito o livro da Zélia (o romance biográfico “Zélia, uma paixão”, de 1991, que foi execrado pela crítica e deu início à saída do escritor da vida pública), que o deixou muito marcado.”
Mesmo passado tanto tempo, Gabriela diz que os quatro continuam sendo pouco analisados na pós-graduação. “Eu, por exemplo, só estive desde então em uma banca de doutorado sobre os romances do Otto. Algumas coisas do Otto foram estudadas e poucas do Paulo. É lamentável que o pessoal da literatura brasileira não utilize a obra poética dele, que é vastíssima, como objeto de estudo. Já recentemente vi um estudo sobre o papel do Hélio na psicanálise. Ele, na literatura, escreveu muito menos do que os outros.”