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Estado de Minas ESPECIAL FERNANDO SABINO/100 ANOS

A falta que a crônica de Fernando Sabino nos faz

Observador atento, o escritor mineiro se revelou um exímio cronista da vida cotidiana ao seu redor, sempre com bom humor e leveza


12/10/2023 04:00 - atualizado 12/10/2023 03:40
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Escultura estilizada de Fernando Sabino
Escultura estilizada de Fernando Sabino feita pelo artista plástico Marco Prata (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A.Press)

“A caminho de casa, entro num botequim na Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade, estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de contar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo do seu disperso humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perspectiva do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem nada mais para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: 'Assim eu quereria o meu último poema'.
Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de negros acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome (...)”

Este é o trecho inicial de “A última crônica”, que, curiosamente, não é a última crônica das incontáveis que Fernando Sabino escreveu. Foi escrita em 1961, ano em que o romancista, cronista e contista mineiro completou 38 anos, portanto, menos da metade dos 81 que viveu. Mas é um exemplo de como o autor dos romances “O encontro marcado” e “O grande mentecapto” sempre foi um observador perspicaz do cotidiano do mundo à sua volta para construir sua obra entre a realidade e a ficção e se tornar um dos maiores cronistas brasileiros.
 
Suas crônicas também correram o mundo, quando morou por dois anos em Nova York e escreveu sobre a vida nos EUA para jornais americanos – muitas incluídas no livro “A cidade vazia” 1990 – e viajou para Europa e Ásia, também escrevendo sobre essas experiências para jornais e revistas.
 
 
 
Em 1980, Sabino lançou o livro de crônicas “A falta que ela me faz”. Nesta que dá título à obra, ele descreve com bom humor e desfecho inusitado as dificuldades insuperáveis que enfrentou no seu apartamento quando a empregada foi embora. Cabe aqui pedir licença à memória do escritor para adaptar esse título e dizer: “a falta que ela (a crônica de Sabino) nos faz” hoje em dia para ilustrar a sua relevância como cronista para a literatura brasileira.
 
O escritor estreou na literatura com os 13 contos de “Os grilos não cantam mais”, em 1941, aos 18 anos. Já naquele tempo, Sabino mostrava como construiria sua obra ao longo das décadas seguintes, sob o ponto de vista de um narrador que passeia pelo bom humor e pelo drama em um tom confidencial com o leitor oculto.
 
“O estilo ágil, o tratamento direto da matéria, o diálogo desconcertante, a prosa bem-humorada, a segmentação da intriga são traços característicos que estarão presentes no restante da obra do ficcionista”, afirma o escritor e crítico literário Fábio Lucas no prefácio de “Fernando Sabino – Obra reunida – volume 1” (Nova Aguilar, 1996), ao comentar a obra de estreia do autor.

Propus aos demais que dali por diante a nossa língua oficial passasse a ser o alemão. Anairam aprendeu logo. Os dois agentes naturalmente se limitavam a prestar atenção, um abanando o rabo, o outro as longas orelhas

Fernando Sabino, 'O menino no espelho'


Fabulação veloz

“Há um ficcionista latente em grande parte das crônicas de Fernando Sabino. O gênero encontrou nele um estilo ágil, uma fabulação veloz, uma crítica aguda do cotidiano”, afirma Lucas.
 
“A junção do registro dos fatos externos inerente a crônica de viagem com o caso inventado pela recriação doméstica forma a longa trajetória da narrativa, a documentar a convivência e a luta do homem contra o tempo. A crônica de Sabino assume ambas as heranças, apresenta forte cunho ficcional, torna-se um jogo de intensa teatralização. (…) A fantasia ficcional de Fernando Sabino são crônicas carregadas de drama, invenção dirigida. O manancial é o mesmo, explorado sempre pela fabulação de um mestre”, analisa Fábio Lucas.
 
Assim, engrandecido pela maioria dos críticos, Fernando Sabino, ao longo de seis décadas de carreira literária, se tornou referência na crônica literária brasileira. Para quem quiser reler ou pretende se iniciar nelas, o próprio autor fez uma seleção de 50 no livro “As melhores crônicas de Fernando Sabino” (BestBolso, última edição em 2022)
 
Fernando Sabino em sessão de autógrafos em BH, em 1962
Fernando Sabino em sessão de autógrafos em BH, em 1962 (foto: Arquivo EM/D.A Press)
 

“Aceita um pão de queijo?‘‘

Fernando Sabino nasceu e viveu em Belo Horizonte até os 21 anos, até se mudar para o Rio de Janeiro. Mas o jeito mineiro de ser e se expressar o acompanhou por toda a vida. A crônica “Minas enigma” expõe essa mineiridade.
 
“Se sou mineiro? Bem, é conforme, dona. (Sei lá por que ela está perguntando?) Sou de Belzonte, uai. Tudo é conforme. Basta nascer em Minas para ser mineiro? Que diabo é ser mineiro, afinal? Inglês misturado com oriental? É fumar cigarro de palha. Em suma: ser mineiro é esperar pela cor da fumaça. É dormir no chão para não cair da cama. É plantar verde pra colher maduro. É não meter a mão em cumbuca. Não dar passo maior que as pernas. Não amarrar cachorro com linguiça.  Porque mineiro não prega prego sem estopa. Mineiro não dá ponto sem nó. Mineiro não perde trem.  Mas compra bonde.  Compra. E vende pra paulista.
Evém mineiro. Ele não olha: espia. Não presta atenção: vigia só. Não conversa: confabula. Não combina: conspira. Não se vinga: espera. Faz parte do decálogo, que alguém já elaborou. E não enlouquece: piora. Ou declara, conforme manda a delicadeza. No mais, é confiar desconfiando. Dois é bom, três é comício. Devagar que eu tenho pressa.
 
Apólogo: o boi velho e o boi jovem, no alto do morro – lá embaixo uma porção de vacas pastando.
O boizinho incontido:
– Vamos descer correndo, correndo, e pegar umas dez.
E o boizão, tranquilamente.
– Não, vamos descer tranquilamente, e pegar todas. Mais vale um pássaro na mão.
 
A Academia Mineira, há tempos, pagava um jeton ridículo: 200 cruzeiros – antigos, é lógico. Um dos imortais, indignado, discursava o seu protesto:
– Precisamos dar um jeito nisso! Duzentos cruzeiros é uma vergonha! Ou 500 cruzeiros ou não!
Ao que um colega, prudentemente, aparteou:
– Pera lá, ou 500 cruzeiros, ou 200 mesmo.
 
Um estado de nariz imenso, um estado de espírito: um jeito de ser manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado – prudência e capitalização:
– Meu filho, ouça bem o seu pai se sair à rua, leve o guarda-chuva, mas não leve dinheiro. Se levar, não entre em lugar nenhum. Se entrar, não faça despesas. Se fizer, não puxe a carteira. Se puxar, não pague. Se pagar, pague somente a sua.
 
Mas todos os princípios se desmoronam diante de um lombo de porco com rodelas de limão, tutu de feijão com torresmos, linguição frita com farofa. De sobremesa, goiabada cascão com queijo palmira. Depois, cafezinho requentado com requeijão. Aceita um pão de queijo? Biscoito de polvilho? Brevidade. Ou quem sabe um broinha de fubá? Não, dona, obrigado. As quitandas me apetecem, mas prefiro um golinha de januária, e pronto: estou satisfeito.
 
Falar de Minas, trem danado, sô. Vasto mundo. Ah, se eu me chamasse Raimundo. Dentro de mim, uma corrente de nomes e evocações antigas, fluindo como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais. Prefiro estancá-las no tempo a exaurir-me em impressões arrancadas aos pedaços, e que aos poucos descobririram o que resto de precioso em mim – o mistério de minha terra, desafiando-me como a esfinge com o seu enigma decifrado, ou devoro-te. Prefiro ser devorado.”

Conversa de mineiro

O conto mais famoso e um dos mais divertidos de Fernando Sabino é “O homem nu”, que também dá nome ao livro que reúne 40 contos e pequenas crônicas, publicado em 1960. A história do homem despido que vai buscar o pão e é surpreendido pelo vento que bate a porta de serviço e o deixa trancado do lado de fora rendeu bem mais do que as suas três páginas originais com adaptação para dois longa-metragens.
 
Entre os inúmeros contos que escreveu, vale lembrar de outro, “Conversinha mineira”, incluído no livro “A mulher do vizinho" (1962) e na coletânea “Fernando Sabino – Melhores contos” (Record, 2016), que fala do jeito mineiro de ser, tema constante da obra do escritor. Segue “Conversinha mineira”:
 
“– É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
– Sei dizer não senhor: não tomo café.
– Você é dono do café, não sabe dizer?
– Ninguém tem reclamado dele não senhor.
– Então me dá café com leite, pão e manteiga.
– Café com leite só se for sem leite.
– Não tem leite?
– Hoje, não senhor.
– Por que hoje não?
– Porque hoje o leiteiro não veio.
– Ontem ele veio?
– Ontem não.
– Quando é que ele vem?
– Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.
– Mas ali fora está escrito "Leiteria"!
– Ah, isso está, sim senhor.
– Quando é que tem leite?
– Quando o leiteiro vem.
– Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
– O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita acoalhada?
– Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite.
– Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?
– Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.
– E há quanto tempo o senhor mora aqui?
– Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso garantir comcerteza: um pouco mais, um pouco menos.
– Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?– Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.
– Para que Partido?
– Para todos os Partidos, parece.
– Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
– Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam queoutro. Nessa mexida...
– E o Prefeito?
– Que é que tem o Prefeito?
– Que tal o Prefeito daqui?
– O prefeito? É tal e qual eles falam dele.
– Que é que falam dele?
– Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
– Você, certamente, já tem candidato.
– Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
– Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?
– Aonde, ali? Ué, gente: penduraram isso aí...

É uma aula de português, sujeito, predicado e complemento. Concordância, regência. Figuras de retórica. Idiotismos linguísticos. Já aprendemos o que é anacoluto - não é um palavrão

Fernando Sabino, 'A última flor do Lácio'


Reencontro fantasma

Ao longo de sua carreira literária, Fernando Sabino teve também encontro – não marcado – com fantasmas. Na crônica “Fantasmas de Minas” – incluída na coletânea “As melhores histórias de Fernando Sabino – 50 textos escolhidos pelo autor” (editora BestBolso, 2016) –, ele conta:
(…) “Os fantasmas de Minas. Em Tiradentes, o do padre Toledo passeia pelo imenso casarão onde morou, hoje transformado em museu. Não se vê viva alma pela ruas: a cidade muito quieta sob o sol, caiada de banco como um sepulcro, tudo parado nas ruas mortas. Resolvo seguir viagem, e sem olhar para trás, para não me transformar em estátua de pedrão sabão.
(…) E em Belo Horizonte o fantasma sou eu próprio. Procuro nestas ruas mal-assombradas a cidade invisível onde vivi até a juventude. Ao dobrar uma esquina, esbarro com o fantasma de um jovem de vinte anos. De volta ao Rio, sinto que na estrada alguma coisa me acompanha: alguma coisa feita de ar e imaginação, que não é propriamente um fantasma, mas o espírito de Minas a impregnar-me de passado e de eternidade. E acelero, confortado, em direção ao futuro.”


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