Carlos Drummond de Andrade
Oi, Fernando, parece que você fugiu dos seus sessent'anos, que devem estar à sua procura em Nova York. Compreendo essa fuga, pois também já a pratiquem em ocasiões de idade redonda – a incômoda idade redonda que os amigos se encarregam de lembrar, e até de festejar, porque não é com eles.
Pois fique sabendo que para mim você está longe de completar sessent'anos, só entrou na casa dos quarenta. Em 1943 foi que nos conhecemos, numa inquieta mesa de bar, em Belo Horizonte, à qual se sentavam também o Otto, o Paulinho, o Hélio, seus companheiros de geração. Eram distintas e irrefreáveis juventudes, em torno de um senhor já meio despido de ilusões literárias e que ainda assim, por tendência à contradição de espírito, as cultivava.
Conhecer toda uma geração de vinte anos, numa noite, através de seus elementos que, sem sombra de dúvida, seriam os mais representativos, os mais ousados da faixa, foi oportunidade singurar rara em minha vida. Nunca mais se repetiu. Depois, conheci pessoas isoladas, que me despertaram interesse humano ou intelectual, porém jamais um grupo inteiro, formado de quatro cavaleiros, não sei se da Távola Redonda ou do Apocalipse, pois de tudo vocês tinham um pouco, em mistura de sonho, desbragamento, fúria, ingenuidade, amor, pureza.
Como vocês falavam, como diziam sobre cada coisa a palavra irreverente, imprevista, que os distinguia da mediocridade e do conformismo! Guardei a imagem dos quatro, que estavam nascendo para mim naquela noite, entre copos de cerveja, em 1943. Lá se vão quarentános. É esta, na minha contabilidade, a vera idade de você, do Hélio, do Otto, do Paulinho.
E agora estou reparando que você e seus companheiros devem ter formado a última geração propriamente literária de Belo Horizonte, se considerarmos a "diversidade unitária" do grupo, ainda hoje visível apesar da dispersão natural da vida. Continuam inapelavelmente os quatro, os marcados, os quatro do "encontro marcado" por um misterioso poder que tanto separa como congrega os seres por meio de temperamentos, afinidades, idiossincrasias, destinos.
Depois de vocês vieram em Minas rapazes talentosos, que fundaram revistas, afirmaram tendências, ocuparam espaço legítimo na criação e na crítica. Mas não me parece que tenham formado uma unidade, constituído esse ar de família que caracteriza vocês. Como caracterizava outros moços, os de 1920, na mesma cidade, com igual espírito de grupo e sem as antipatias grupais que todos, nós e vocês, soubemos evitar.
Então, meu caro Fernando, tenho de confessar que colocando-nos a todos no mesmo saco, me sinto muito ligado geracionalmente a vocês, pois a diferença de vinte anos desapareceu numa simples noite de Belo Horizonte em que, diante da mesma cerveja eterna, zumbiam os anseios dos quatro como antes zumbiam os nossos em idêntica situação. E assim me acostumei a vê-los, tempo rolando, com um sentimento de irmandade que me dá prazer.
É bom saber que a uma distância de três quadras, tenho você pronto a bater papo e a pregar peças, depois de vencido o muro de defesa da sua secretária eletrônica. Em matéria de peças, declaro-me seu devedor, já que as pregadas por você são sempre superiores às que ousei elaborar. Paciência, ainda não perdi a esperança de maquinar um plano tremendo de desforra de suas peraltices; um dia chego lá. Enquanto isto, vou-me divertindo e me reconfortando com o que você escreve, em livro ou jornal, com um senso de humor que é cada vez mais raro entre os nossos prosadores, e do qual você possui a fórmula imbatível.
Você soube tirar todos os efeitos possíveis de um homem nu entre a mulher do vizinho e a inglesa deslumbrada, numa cidade vazia mas cheia de vibração e absurdo. Você trouxe para o papel um tipo entre doloroso e cômico, o Vira-Mundo, que a gente não pode mais esquecer. Refletiu todas as mágicas da infância no espelho, e no grande romance, traçou o quadro mais vivo de juventude à procura de si mesmo, que comove hoje leitores de todo o mundo. E a cada semana recolhe e comenta o sem-sentido das coisas, que se torna um sentido quando observado com as doses de malícia e sensibilidade do verdadeiro escritor. E isto, meu velho quarentão, ninguém lhe disputa. Você achou a palavra leve, a frase límpida, o ritmo discreto da prosa, que só se alcança quando se consegue atirar para longe todo artifício e brilho aparente. A condição de escritor anda meio desacreditada no Brasil, país onde o sucesso ntem sempre corresponde à qualidade.
Mas você é dos que mantêm a tradição, vitalizando-a. Seu instrumento de trabalho é o mesmo de toda gente, só que você sabe afiná-lo e extrair dele um som inconfundível. Prosa de Fernando é uma astúcia que só ele mesmo sabe praticar. Tão simples" É? Experimentem manejar o simples sem a arte.
Afinal, Fernando, não disse nada de novo sobre você, nem era esta a minha inteção. Quis apenas lembrar que você não precisava se esconder dos sessent'anos. Dou-lhe quarenta por fora, pelas minhas contas. Dou-llhe vinte, dou-lhe a madura juvenilidade de sua prosa. E um abraço do velho companheiro. Volte, Fernando Sabino.
PARABÉNS PELO JORNAL
O poeta Carlos Drummond de Andrade publicou este texto endereçado a Fernando Sabino em sua coluna no jornal Estado de Minas de 15 de outubro de 1983, três dias depois de o autor de “O encontro marcado” completar 60 anos. Nessa época, os dois escritores mineiros viviam no Rio de Janeiro.