Jornal Estado de Minas

PENSAR

'Se um viajante numa noite de inverno', uma obra-prima de Italo Calvino



STEFANIA CHIARELLI
ESPECIAL PARA O PENSAR

No centenário de nascimento de Italo Calvino, cujo conjunto da obra o coloca entre os grandes nomes da literatura do século 20, um romance em particular condensa muitas das preocupações do escritor italiano: “Se um viajante numa noite de inverno”(1979), que acaba de ganhar edição especial em capa dura da Companhia das Letras, traduzida por Nilson Moulin e com posfácio de Maurício Santana Dias, é uma narrativa que tem como personagem central o Leitor, promovido a protagonista. Assim mesmo, sem nome próprio, com L maiúsculo. A ele se agrega Ludmilla, a Leitora.



Em um dos melhores capítulos iniciais de que se tem notícia, o narrador se dirige a nós, leitores, propondo um peculiar protocolo de leitura:

“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, “Se um viajante numa noite de inverno”. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, não quero ver televisão!’ Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’ (…) Regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se. (…) Procure providenciar tudo aquilo que possa vir a interromper a leitura. Se você fuma, deixe os cigarros e os cinzeiros ao alcance da mão. O que falta ainda? Fazer xixi? Bom, isso é com você”

Relaxe, feche, regule, procure, afaste: os verbos no imperativo não surgem à toa. O narrador é um tanto mandão, verdade seja dita. Mas ele usa a autoridade para fazer um convite, uma proposta para que o corpo se acomode e inicie a experiência da leitura de modo ritualístico (guardemos esse aspecto de principiar algo, ele será importante). Uma mudança da atitude mental deve acontecer, daí a relevância do que vem antes da leitura, tão fundamental quanto o prazer do ato de ler em si. O endereçamento do narrador a um “você”estabelece de cara a sensação de proximidade. Ficamos, desse modo, implicados no texto, viajantes devorados pela vertigem de aventuras que vão circular nessa trama.


Leia: 
'Calvino é um autor com muitas portas de entrada', diz editora

Leia: De Homero a Borges, Italo Calvino exalta clássicos em livro fundamental

Leia: 
Em livro póstumo, Calvino apresentou suas propostas para o novo milênio


Leia: Italo Calvino: leia um trecho do livro 'Todas as cosmicômicas'

Leia: Italo Calvino: 'Um livro não é um meteoro'

Leia: Coletânea com entrevistas de Italo Calvino celebra centenário do autor

Elas serão muitas, apresentadas como sequências de dez histórias interrompidas, com estilos totalmente diversos, transcorridas em tempo e espaço diferente entre si. Nenhuma será concluída, por motivos e impedimentos variados; todas seduzem o Leitor. Como afirmou Calvino em resposta a uma resenha da época, “a cada romance iniciado e interrompido corresponde um caminho descartado”. Um vigoroso exercício de começar, desenvolver, abandonar. Dez vezes, dez caminhos. Para um contista com amplo domínio da narrativa breve, conhecido cultor do fragmento, parece uma atitude natural. Ele teria considerado nomear o livro como “Incipit”, designação latina para as primeiras palavras de uma obra – o gesto iniciático da criação

São relatos filosóficos, geométricos, políticos, eróticos, apocalípticos. Um cardápio e tanto. Apesar da complexidade estrutural e do jogo metaliterário proposto, “Se um viajante”não trilha o caminho excessivamente cerebral, cuja fruição seria dada apenas aos especialistas. Estes poderão explorar camadas mais profundas no mergulho vertical da leitura, mas o chamado leitor comum também é convidado a participar da fluidez narrativa, sem concessões. A não-linearidade e o caráter enciclopédico do romance convivem com a legibilidade do texto, e isso é muito bom. O prazer da leitura está garantido, Leitor e Leitora se divertem, tanto aqueles que estão dentro do livro quanto quem está de fora, espelhado neles.

Em paralelo a esses tantos começos serão figuradas várias categorias de leitores. Alguns são ocasionais, ecléticos, estilo franco atirador. Outros, por vocação, para quem a leitura é um modo de estar no mundo. Aparece ainda um terceiro tipo, o Não-Leitor, alguém que procura nos livros matéria para debate ou para engordar uma tese acadêmica, tipo que sinaliza a leitura burocratizada e pouco afeita à navegação da “grande biblioteca”, no dizer do narrador. A eles se agrega Ludmilla, a leitora por prazer desinteressado, integrante do grupo dos que “se satisfazem em lê-los e amá-los”. Essa figura é defendida com vigor, alguém que, na formulação do crítico Ricardo Piglia, enxerga na leitura uma forma de vida.



“Se um viajante” avança para um desenlace reconfortante, quando Leitor e Leitora se encontram na cama, possível abrigo de leituras paralelas. Nesse espaço finalmente os títulos das histórias se complementam e formam uma (breve) narrativa. Variados momentos no romance remetem ao paralelismo entre a leitura das páginas e a observação dos corpos dos amantes: “É nesse aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis”.

Calvino afirma ter calculado tudo para que houvesse um final feliz tradicional, algo que “selasse a moldura que encerra a desordem geral”. Dentro do caos, alguma ordem amorosa possível, parece dizer. Para quem aprecia as diversas figurações da leitura na obra do autor, nunca é demais lembrar o conto “Aventuras de um leitor”, integrante da coletânea “Os amores difíceis”, na tradução de Rafael Ramalhete. O relato acompanha o dilema de Amedeo, recém-saído de férias e dividido entre a dedicação às páginas de um livro e o interesse na bela vizinha de praia. Corpo, olhar e prazer surgem concentrados nessa narrativa primorosa sobre a centralidade da leitura e os imperativos do desejo. A experiência colhida nas páginas de um livro surge em permanente tensão com aquela vivida no mundo concreto. Difícil decidir qual a melhor, ou a mais real.

Sobre o assunto, vale destacar um dos últimos capítulos de “Se um viajante”, que cruza depoimentos de vários tipos de leitores. Um deles, em tom proustiano, confessa: Também para mim todos os livros que leio conduzem a um único livro (...) – mas se trata de um livro situado num passado distante, que a custo emerge de minhas lembranças. É para mim uma história anterior a todas as outras, e da qual todas as histórias que leio me parecem oferecer um eco, que logo se perde. Em minhas leituras não faço nada além de buscar esse livro lido em minha infância, mas o que me recordo é demasiado pouco para reencontrá-lo.



Novamente está encenada a ideia de uma leitura inaugural, que se espalha no tempo, como o eco referido por Calvino. O leitor está em busca da revisitação do prazer que a narrativa da infância proporcionou, mas ela se apresenta sempre insuficiente, quase de segunda mão, já que nunca se resgata integralmente o gozo daquela primeira fruição. “Se um viajante” de inúmeras formas trabalha com a noção de expectativa, fabulando sobre o frescor dos começos. Como se todo leitor e leitora procurasse a tal reverberação da origem, perdida para sempre. Ouvir de novo e de novo, um gesto infantil no mundo adulto.

A LEITURA NO TEMPO 

Arredio a comentar a própria biografia, sempre irônico, Calvino alterava propositalmente dados da vida pessoal nas entrevistas que concedia. A crítica Adriana Iozzi, especialista na obra calviniana, afirma ser possível encontrar na publicação póstuma “Seis propostas para o próximo milênio” elementos de caráter autobiográfico, já que os princípios destacados - leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade – seriam valores fundamentais em sua própria obra. Ao destacar características desejáveis para o milênio que se iniciava, o autor estaria falando de si. Como se sabe, Calvino sofreu um derrame cerebral e morreu antes de terminar a sexta proposta – no original, “memos”, quase lembretes, algo menos solene e definitivo. As chamadas “lições americanas” seriam proferidas no quadro das Conferências Norton, na Universidade de Harvard, entre 1985 e 1986.

 

O autor colecionou leituras, gêneros e fases, concretizando a multiplicidade que teorizava. Transitou das fábulas aos contos, dos ensaios literários aos romances, sempre se renovando, experimentando aqui e ali com admirável independência. Mergulhou na dimensão das fábulas e contos de fadas, pesquisando a estrutura desses modelos narrativos. Travou intenso diálogo com toda a tradição literária italiana, interessou-se pelos quadrinhos, pelo cinema, pela ciência. Dizia que quando estava convencido da incapacidade de escrever um determinado tipo de livro, sentava-se à escrivaninha e começava a escrevê-lo.





 

Ao pensar seu tempo e projetar futuros, o escritor achava equivocado depreciar as novidades tecnológicas em nome de valores humanistas em perigo, como deixa claro na conferência “O livro, os livros”, de 1984, proferida na Feira do Livro de Buenos Aires e publicada no volume “Mundo escrito e mundo não escrito”, com tradução de Maurício Santana Dias. Evitava uma visão pessimista em relação às mudanças e acreditava que novos meios de comunicação poderiam trazer renovados desdobramentos criativos e formas de expressão.

Calvino não chegou a testemunhar as radicais transformações do século 21, uma era indissociável da aceleração, da vertigem de tempo veloz e hiperconectado, de janelas e telas, marcada pela evanescência de dispositivos em que a realidade (ou sua representação) é experimentada de modo fragmentário. Transcorridos mais de quarenta anos da publicação de “Se um viajante”, vale pensar o que significa a leitura desse hiper-romance no presente. Como as novas gerações dão vida ao livro que confere protagonismo à multiplicidade e à figura de quem lê? Como lê uma obra sobre a leitura o leitor de hoje, em meio a tantas narrativas díspares e novos suportes?

De forma enviesada, talvez Calvino se sintonize com essa época da urgência, de excesso de comunicação e hiperatividade, ao plasmar um romance com tantos inícios, perfeitos em si, mas nunca totalmente desenvolvidos. Uma cascata de histórias que se configuram como promessa – as célebres narrativas potenciais. A esse respeito, é importante lembrar de seu envolvimento com o Oulipo – Ateliê de literatura potencial –, grupo literário fundado na França em 1960, que explorava a potencialidade da literatura por meio da elaboração e utilização criativa de regras formais rígidas. A visão do literário em Calvino se associa à ideia de jogo combinatório, em uma proximidade com a própria noção de diversão, muito cara ao autor.

Todo grande livro cria um novo leitor, afirmou Umberto Eco. Certamente “Se um viajante”faz nascer outros e variados modos de ler, tirando proveito da estratégia de interrupção e retomada, nessa rede infinita de narrativas. A última história do volume dirige a nós uma pergunta: “Que história espera seu fim lá embaixo?”Não sabemos ao certo a resposta, o que é na verdade um alívio. Viajando nessa noite de inverno tão peculiar, os leitores e leitoras – a quem cabe a tarefa de preencher os espaços abertos desse irresistível mundo escrito – fabulam e aceitam a provocação do narrador, devolvendo a ele o desafio: “Bom, isso é com você”.

STEFANIA CHIARELLI é professora, pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense e autora do ensaio “O cavaleiro inexistente de Italo Calvino: uma alegoria contemporânea”