Jornal Estado de Minas

PENSAR

Autora de 'Mata doce': "O Brasil está fazendo análise"

Uma mulher se prepara para matar um boi na abertura de "Mata doce" (Alfaguara), primeiro romance que a autora baiana Luciany Aparecida assina com o próprio nome. "Ambos entendiam a hora chegada. A vontade da mulher era dar vazão à sua mágoa. A vontade do animal, agora preso para o abate, havia sido escapar." É uma passagem forte, escolhida pela autora para nos apresentar a personagem Maria Teresa, rebatizada como Filinha Mata-Boi, que "estreava uma nova tradição": "Ela tomou a direção do movimento e, com as costas do machado, acertou a primeira pancada na altura exata da cabeça que tombaria à sua dor."



A mesma personagem cuida "do mais sublime roseiral" do vilarejo no interior da Bahia que batiza o livro. "Possuir um pé de rosa branca naquele lajedo só poderia ser mesmo história de mulher valente", conta o livro, iniciando a alternância entre matança e doçura que chamou atenção de escritores como Jeferson Tenório. "Entre a brutalidade e a delicadeza, Luciany constrói um mundo sobre perdas, lutos e afetos", aponta o autor de "O avesso da pele", na apresentação da edição.

Vozes narrativas também se alternam em uma saga familiar que, a exemplo de "Torto arado" (do também baiano Itamar Vieira Junior), traz as mulheres para o protagonismo com força e identidade próprias. "Mata Doce" conta da vida de mulheres que fugiram do escravismo e de opressões da heteronormatividade", afirma a autora ao Estado de Minas. "As mulheres desse romance são pessoas que, dentro de estruturas de opressão, irrompem escolhas por caminhos de liberdade."

Nascida em 1982 no Vale do Rio Jiquiriçá, Luciany Aparecida tem doutorado em Letras e pesquisas nas áreas de nação, imigração, memória e identidades. Com a assinatura Ruth Ducaso, ela publicou os livros "Contos ordinários de melancolia" e "Florim" (novela). Leia, a seguir, a entrevista da autora de "Mata doce" ao Pensar:

Como surge "Mata doce"?
A partir de uma reflexão sobre a vida e a morte, e como a memória pode estreitar esse desamparo, que é lidar com ausências e presenças. Por exemplo, se essa morte for o assassinato de uma pessoa amada, de um animal, a degradação ambiental alienada pela justificativa do consumo, quão terrível será conviver com a presença dos assassinos? E com as ausências amorosas? "Mata Doce" nasceu da reflexão sobre esses pensamentos. E, no Brasil, infelizmente, é quase cotidiano histórias que nos levam a pensar nesses temas. Qualquer pessoa aqui, mesmo que em diferente faixa-etária, poderia ter uma história dessa para narrar. 





Como encontrou as vozes narrativas do romance?
Para encontrar a voz narrativa desse romance eu alarguei meu ouvido, como uma concha marinha que foi desenterrada em área de terra firme, para melhor escutar histórias do mundo. E o que ouvi, de Minas Gerais, foi a dramaturgia "Mata teu pai" e "Vaga Carne" de Grace Passô; os poemas "Vozes-mulheres", de Conceição Evaristo e "Consolo na praia", de Carlos Drummond de Andrade. Toda essa escuta me comoveu muitíssimo e dela parti, multiplicada, e desejosa de também realizar um trabalho de arte. 

"Estou hoje voltando a estas memórias como se não fosse eu." Como você emprestou suas memórias ou a de pessoas próximas ou conhecidas para as personagens do livro?
Estas não são minhas memórias, são as memórias de uma senhora de noventa e dois anos, Maria Teresa, a personagem narradora do romance, que transita entre uma voz narrativa em terceira e primeira pessoa. Maria Teresa foi uma órfã adotada por duas mulheres, numa comunidade rural chamada Mata Doce, que se tornou datilógrafa e matadora de boi, após um grande trauma. Quando comecei a criar essa história pensei que a contaria apenas com uma voz narrativa clássica, em terceira pessoa, onisciente, mas a personagem quis falar, pôs a mão na máquina e esse livro então ficou sendo as memórias dela. Tudo que Maria Teresa lembra, ou que supõe lembrar, e ou que lhe foi revelado da sua infância até sua idade de noventa e dois anos e que ela um dia decidiu bater numa máquina de datilografia é o romance "Mata Doce". Quem o lê compreenderá melhor esse jogo narrativo. E espero que muita gente o leia, pois acho que essa é uma personagem que merece nossa escuta. 

Qual a importância de "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis, para a literatura e para o seu livro?
Para a literatura brasileira tem várias importâncias, uma delas é ser o primeiro romance publicado no Brasil, por uma mulher negra, nordestina, que temos notícia. Para o mundo é um importantíssimo trabalho abolicionista, que noticia o escravismo na América. Para os estudos da teoria literária é um dos principais textos contemporâneos do 19 para pensar voz narrativa. Para o meu livro é uma inspiração. E o excepcional de uma peça de arte, sendo ela um livro, uma música, uma fotografia, é ela nos inquietar a desejar mais do mundo. Saber da existência da escritora Maria Firmina dos Reis me faz desejar viver, escrever, publicar - é aquela comoção mágica que chamamos de representatividade. 





Como a fé move os personagens de "Mata doce"?
Move no sentido promotor da esperança. A fé é o simbólico que os faz erguer a cabeça e seguir em frente. Eu sou uma mulher de fé e quis levar isso para o livro. Entendendo que esse é um espaço de disputa no Brasil. E compreendendo que a literatura pode contribuir para esse debate, nos desvelando a encarar o país com mais responsabilidade social. Acredito que a literatura encanta, mas também faz pensar. 

Há, em "Mata doce", disputas de terra, assassinatos e um estupro. Mas ao mesmo tempo há também uma ligação tão forte entre as personagens que se sobressai e sobrevive à violência. Podemos afirmar que "Mata doce" é uma saga na qual prevalecem os laços familiares?
Acho que para responder primeiro temos que nos perguntar, o que é um laço familiar? Vivemos em um país absurdamente violento com mulheres negras, LGBTs, oriundas de comunidades rurais (o que pode querer dizer, por exemplo, ter outra posição em relação ao consumo e a devastação do meio ambiente, e isso incomoda). Nesse contexto, que o violentador é a sociedade, ou seja, a família, o tempo inteiro podemos falar de amparo e de violência, num mesmo laço. Dito isso, sim pode ser que em "Mata Doce" o que prevaleça sejam os laços das famílias que decidem agir na mobilidade do amor. Mas é indispensável destacar que essa é uma posição. Uma escolha. Logo nessa perspectiva a expressão "laços de família" deve ser lida higienizada de preconceitos estruturais como o racismo, machismo e LGBTfobia. O que quero dizer é que: as mulheres desse romance encontram amparo em suas redes de amizade quando elas estão em movimento pela vida e nesse jogo reconstituem enlaces familiares.  

Romance contemporâneo brasileiro de maior vendagem dos últimos anos, "Torto arado" é de autoria de um escritor baiano. A que atribui o encantamento do leitor com a história criada por Itamar Vieira Junior? Poderia citar outros autores e autoras baianas que também merecem idêntico reconhecimento?  
Existe um marco geográfico de começos do Brasil na Bahia e acho que isso faz desse estado um ponto indispensável através do qual podemos entender o país. E nos últimos oito a sete anos temos vivido situações político-sociais que nos impulsionam para um desejo de nos compreender melhor. Revisitar nossos traumas. Sabe, eu diria que o Brasil está fazendo análise. Ele precisa se reconhecer. Existem muitas pessoas leitoras nesse país e no mundo, e o sucesso editorial dos livros de Itamar são provas disso, desejosas de consumir um produto que lhes possa oferecer perspectivas mais amplas sobre a "nação" brasileira. Acho que nossa literatura tem oferecido isso. A cena literária na Bahia é pungente e não só na prosa, também na poesia. Mas, ainda na prosa, cito Aidil Araújo Lima, no livro "Mulheres sagradas". 

Quais os autores e autoras brasileiros que você mais admira, entre os contemporâneos e os de séculos anteriores?
Eu sou leitora da literatura brasileira, aprendi esse gosto com minha avó e avô, na minha comunidade, e ser uma pessoa leitora é minha grande glória nessa vida-inglória (hahaha), logo essa é uma pergunta difícil de responder com brevidade, por isso, responderei dentro de um recorte. Vou citar romancistas que usaram o diálogo entre a literatura e a história do Brasil como procedimento de escrita. Primeiro, para fazer referência ao século 19, Maria Firmina dos Reis, que escreve em diálogo com o escravismo, exemplo, em "Úrsula" e "A escrava", apresentando personagens que passaram por esse horror e assim deixando para nós registros abolicionistas desse condenável sistema econômico. Para citar o século 20, Lygia Fagundes Telles, por exemplo, no romance "As meninas", e como ela enlaça a trama com enredos da ditadura militar; e, no século 21, a obra romanesca de Eliana Alves Cruz, ("Água de Barrela", "O crime no Cais do Valongo", "Solitária"), que tem apresentado diferentes narrativas resultantes de pesquisas em arquivo público, acervo pessoal e relatos orais.  



Serviço

"Mata doce"
De Luciany Aparecida.
Alfaguara.
304 páginas.
R$ 79,90.