Jornal Estado de Minas

Parlamentares tentam nova estratégia para driblar Ficha Limpa

Projeto em tramitação na Câmara dos Deputados modifica a lei de iniciativa popular ao permitir que políticos com finanças reprovadas por Tribunais de Contas e pelos Legislativos se candidatem

Alice Maciel

Depois de ter sua aplicação adiada para as eleições de 2012, a Lei da Ficha Limpa pode sofrer mais um revés. O Projeto de Lei Complementar (PLP) 14/2011, que tramita na Câmara dos Deputados, permite que políticos com contas julgadas irregulares pelos Tribunais de Contas e pelas casas legislativas se candidatem enquanto um tribunal do Judiciário não decidir a matéria, modificando a lei de iniciativa popular. Se aprovado, o projeto vai beneficiar, só em Minas Gerais, 66 prefeitos que tiveram as contas de 2009 rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). Para ter ideia do tamanho dessa brecha na lei, somente no ano passado, o Tribunal de Contas da União (TCU) encaminhou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) uma lista com mais de 8 mil nomes de gestores que tiveram as contas rejeitadas. A proposta tramita em regime de prioridade e aguarda parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).
Está sob a responsabilidade dos deputados da CCJ dar o primeiro parecer sobre a proposta que tramita na Casa - Foto: Beto Oliveira/Agência Câmara - 27/4/11De acordo com o texto do PLP, de autoria do deputado federal Sílvio Costa (PTB-PE), o julgamento das contas dos gestores pelos Tribunais de Contas e pelas casas legislativas só terá efeito eleitoral depois da confirmação da decisão pelos Tribunais de Justiça (TJs), pelos Tribunais Regionais Federais (TRFs), pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, até mesmo, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente, a lei não exige a manifestação da Justiça para que o político se torne inelegível por oito anos. Basta que as contas sejam rejeitadas pelo Tribunal de Contas por irregularidade insanável caracterizada como ato de improbidade administrativa, regra incluída pela Lei da Ficha Limpa.

A proposta derruba a única medida que ainda impede os desvios de recursos nas prefeituras, que é a inelegibilidade, alerta a diretora da Secretaria Executiva do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), Jovita José Rosa. Como auditora do Sistema Único de Saúde (SUS), ela diz que os documentos colhidos pelos auditores que chegam aos tribunais são suficientes para rejeitar ou não os gastos públicos. “As multas aplicadas pelos Tribunais de Contas são pequenas. Elas não inibem os prefeitos. A gente vê pessoas morrendo por causa da corrupção. Esse projeto é uma afronta à sociedade”, rebate.

A diretora do MCCE observa que, só em 2010, a União repassou mais de R$ 80 bilhões aos estados e municípios a título de transferências voluntárias do SUS e da complementação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). “A fiscalização de todos esses recursos fica a cargo do TCU. Os gestores com contas julgadas irregulares na esfera administrativa figuram na lista dos potenciais candidatos inelegíveis que o tribunal prepara e encaminha à Justiça Eleitoral para avaliação e decisão”, observa Jovita.

Na visão do autor do texto, deputado Sílvio Costa, a proposta vai “consertar o erro” que foi a aprovação da Lei da Ficha Limpa. Ele diz saber que seu projeto é antipático diante da opinião pública e acrescenta : “A opinião pública infelizmente também comete erros”. Para o parlamentar, a aprovação do PLP 14/2011 é necessária porque “a maioria das Câmaras tem vocação governista. Isso significa que, quando um cidadão deixa de ser prefeito, no outro dia a maioria da Câmara já passa a ser sua adversária. Consequentemente, ele sempre terá dificuldades de aprovar suas contas”.

O projeto, entretanto, não afetará apenas as 5,5 mil câmaras municipais, atingindo, sobretudo, o próprio Congresso Nacional e o TCU, que têm a competência, respectivamente, de julgar as contas anuais do presidente da República e julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiro, bens e valores públicos da administração direta e indireta, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário.

Reação Imediata

O Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União (Sindilegis) está recolhendo assinaturas via internet, no www.sindilegis.org.br/peticao/peticao, para tentar vetar a aprovação do PLP 14/2011. A segunda vice-presidente do sindicato, Lucieni Pereira, disse que, se a proposta for aprovada, a entidade vai recorrer ao Supremo. Segundo ela, representantes do sindicato e do MCCE já se reuniram várias vezes com o presidente do TCU, ministro Benjamin Zymler, para pensar maneiras de barrar a proposta. “Além de fragilizar a Lei da Ficha Limpa, o projeto, se aprovado, vai esvaziar os Tribunais de Contas”, afirma Lucieni.


Entenda o caso 

A Lei da Ficha Limpa é fruto de uma campanha desenvolvida por diversas entidades, entre elas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Em quase dois anos, o grupo recolheu cerca de 1,6 milhão de assinaturas, suficientes para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular que proibisse pessoas com condenações em primeira instância a disputar as eleições.

Em 29 de setembro de 2009, o projeto foi entregue na Câmara dos Deputados e começou a tramitar (foto). Na Casa, recebeu emendas, entre elas, a obrigatoriedade de uma condenação em segunda instância – ou seja, nos tribunais. Também foi incluída a possibilidade de réus que ganharem recursos com efeito suspensivo da condenação disputarem as eleições. 

Aprovada na Câmara no início do ano passado, a matéria foi aprovada no Senado em maio.

Em 4 de junho de 2010, o texto foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No entanto, ficou a dúvida se a legislação já deveria ser aplicada nas eleições de outubro do ano passado. Os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entenderam que sim. No entanto, a discussão foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que adiou a aplicação da lei para as eleições do ano que vem.