Jornal Estado de Minas

Da Mesa direto para o Rio

Dois secretários da Câmara estão entre parlamentares que destinam emendas para ONGs

Alessandra Mello Maria Clara Prates Alice Maciel

A MS funciona em sala de prédio no Centro do Rio junto com três empresas - Foto: Renato Weil/EM/DA PressRio de Janeiro –Dois representantes da Mesa Diretora da Câmara, os deputados federais Eduardo Gomes (PSDB-TO), primeiro-secretário, e Júlio Delgado (PSB-MG), quarto-secretário, destinaram emendas para organizações não governamentais (ONGs) sediadas em estados onde não são votados. Os dois integram a relação de 74 parlamentares que, somente no ano passado, destinaram 165 emendas no valor total de R$ 136,3 milhões para entidades não governamentais distintas de suas bases, conforme um levantamento feito pelo Estado de Minas no orçamento de 2010.


Uma das ONGs, a Muito Especial, com sede no Rio de Janeiro, é comandada por um amigo e sócio de uma das filhas de Eduardo Gomes. A outra funciona em um apartamento em um conjunto habitacional na periferia também da capital fluminense. A emenda do deputado tucano de Tocantins era para capacitação de pessoas com deficiência, principal atividade da Muito Especial, entidade conhecida, com atuação também na Paraíba, Rio de Janeiro, Ceará, Tocantins, Distrito Federal, e patrocinada muitas vezes pelos governos estaduais.


Já a emenda do deputado mineiro para a ONG, cuja sede fica em um apartamento, era para a realização de um vídeo sobre educação com jovens de Cataguases, na Zona da Mata mineira. A entidade, no entanto, não atua somente na área de educação. Sua atividade é bem diversificada. Ela também faz cursos de fotografia, feiras de gastronomia e CDs com marchinhas de carnaval.

R$ 3,5 mi para uma ONG só

O primeiro-secretário da Câmara, deputado federal Eduardo Gomes (PSDB), votado em Tocantins, destinou no ano passado R$ 300 mil em emendas parlamentares para a organização não governamental Muito Especial, com sede no Rio de Janeiro. Coincidência ou não, o diretor da Muito Especial, o engenheiro Marcus Robertson Scarpa, é sócio de uma filha do deputado na Green Publicidade.

Aberta em maio do ano passado e com sede no Rio de Janeiro, a Green faz parte de uma teia de negócios de Marcus Scarpa que envolve sete empresas, algumas inativas, do ramo de telecomunicações, consultoria, engenharia e publicidade. Na Receita Federal, a sede da Green está registrada no mesmo endereço onde existem outras empresas em nome de Marcus Scarpa. O local é uma sala em um prédio comercial sem nenhuma placa de identificação na porta. Com bom trânsito entre o poder, a ONG de Scarpa já recebeu dos cofres públicos R$ 3,5 milhões em quatro convênios do Ministério da Ciência e Tecnologia entre 2008 e 2010, apesar de só ter prestado contas de um, segundo informações do Portal da Transparência.

A Muito Especial também foi favorecida em 2010 pelos então deputados Zé Gerardo (PMDB), do Ceará, Edgar Moury (PMDB) e Fernando Nascimento (PT), de Pernambuco, totalizando R$ 6,3 milhões de recursos em emendas parlamentares para capacitar portadores de necessidades especiais. Mas não só de emendas sobrevive a Muito Especial. Ela recebeu recursos diretos do Ministério da Ciência e Tecnologia no valor de R$ 1 milhão para a realização em junho do ano passado do projeto Inclusão Muito Especial Tocantins e do 2º Congresso Muito Especial de Tecnologia Assistiva e Inclusão Social das Pessoas com Deficiência. O dinheiro veio direto dos cofres do ministério, mas o deputado Eduardo Gomes assumiu a autoria da emenda em seu site pessoal, onde divulga as realizações de seu mandato.

A ONG fica no Centro do Rio de Janeiro, próxima ao edifício Rodolfo de Paoli, onde funcionam a Green e três outras empresas de Scarpa. O porteiro do prédio disse que no local existe apenas uma empresa, a MS Desenvolvimento de Projetos. “Nunca funcionaram essas empresas nesta sala”, disse ao ser questionado sobre a existência das outras duas registradas no mesmo endereço. A informação foi confirmada por uma funcionária da empresa, que contou ainda que no local funciona apenas a MS Desenvolvimento de Projetos. Ela atendeu a reportagem sem saber que estava conversando com jornalista. Todas as empresas aparecem como ativas na Receita Federal.

Em uma casa no Bairro Santa Rosa, em Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, funciona a empresa Quality Engenharia e Serviços de Engenharia, também de Marcus Scarpa. O local, aparentemente uma residência, estava todo fechado e sem nenhuma placa. Uma pessoa identificada como Marcos de Oliveira atendeu a reportagem e disse que ali funcionava a contabilidade das empresas do grupo do dono da Muito Especial e não quis dar mais explicações.

Conjunto habitacional na periferia do Rio, onde deveria funcionar a Luz da Manhã - Foto: Renato Weil/EM/DA Press

R$ 150 mil para fazer um vídeo


O quarto-secretário da Câmara, deputado federal mineiro Júlio Delgado (PSB), mandou para uma ONG do Rio de Janeiro, a Luz da Manhã, uma emenda de R$ 150 mil para a produção de um vídeo-reportagem com estudantes de escolas públicas e moradores de comunidades carentes de Cataguases, na Zona da Mata de Minas. O fato de o parlamentar mineiro, que exerce seu quarto mandato, destinar uma emenda para uma ONG fluminense já é estranho. Pior ainda é o fato de a sede da ONG funcionar em um apartamento, na Rua Pará de Minas, em um conjunto habitacional no Bairro Engenho da Rainha, perto do Complexo do Alemão, conjunto de favelas carioca. A ONG está registrada em nome de Ronaldo de Sena Santos, líder comunitário de uma das favelas, conhecido cabo eleitoral da capital fluminense.

A reportagem esteve na sede da ONG Luz da Manhã na terça-feira, mas não havia ninguém no apartamento. Nenhum dos vizinhos sabia da existência de uma entidade que trabalha na área cultural e artística, como consta no registro da ONG na Receita Federal, criada em junho de 2005. No local, segundo eles, mora seu Ubirajara. Localizado pela reportagem, ele confirmou que o seu apartamento é a sede da ONG. “A ONG funciona na minha casa, sou o diretor artístico”, contou.

Mesmo funcionando em um apartamento sem nenhuma estrutura administrativa aparente, a ONG embolsou R$ 415,8 mil dos ministérios da Cultura e do Turismo e também da Caixa Econômica Federal para fazer feiras de comida e CDs de marchinhas em comemoração do centenário do compositor fluminense Mário Lago. Em um dos convênios com o Ministério do Turismo, a Luz da Manhã foi considerada inadimplente por causa de problemas de prestação das contas. Uma tomada de contas especial chegou a ser instaurada para apurar o destino da verba, que determinou a devolução do dinheiro liberado durante a gestão da hoje senadora Marta Suplicy (PT-SP).

Vizinhos disseram que Ronaldo Sena é conhecido nas redondezas por causa de seu trabalho com a “comunidade”. “Ele e o vereador Aloísio Freitas (DEM-RJ) e Rafael Freitas (primeiro suplente de deputado estadual do PP) ajudam muito a gente. Na época de campanha passaram flúor nas crianças. Qualquer problema a gente pede ajuda para ele”, disse uma moradora.

Ainda no local, a reportagem conversou com Ronaldo por telefone. Sem saber o teor da matéria, o presidente da Ação Social Luz da Manhã disse que a ONG não funciona mais na casa de seu Bira, mas na sua casa, no Bairro Engenho Novo. Depois, em outra ligação, disse que a ONG estava temporariamente na casa de seu Bira, pois o aluguel da sede oficial no Bairro das Laranjeiras ficou muito caro. No entanto, para a Receita, a ONG sempre funcionou na Rua Pará de Minas. Ronaldo Sena disse também que não conhece o deputado Júlio Delgado e não sabia que havia emendas dele para sua entidade. Questionado sobre as atividades da ONG, ele afirmou que ela sempre foi filantrópica e que de um tempo para cá passou a trabalhar com os artistas no carnaval. Disse ainda que ela atua em um projeto para a Copa do Mundo e outro para o “pessoal do iatismo”.

Outro lado

O empresário Marcus Robertson Scarpa disse que foi sócio da filha de Eduardo Gomes (foto), Carla, por pouco tempo e que hoje ela não faz parte mais da Green Publicidade. Também disse que a empresa nunca funcionou, pois a filha do deputado, estudante de publicidade, se mudou para São Paulo e desistiu do negócio. Segundo Scarpa, ele e Eduardo Gomes são amigos desde 2009, quando o parlamentar conheceu o trabalho da Muito Especial e se interessou por ele. Scarpa disse que a ONG capacita deficientes físicos em Pernambuco, Paraíba e Tocantins e é reconhecida nacionalmente pela sua atuação. Procurado pela reportagem, o deputado também disse que sua filha não é mais sócia de Scarpa., que a sociedade durou apenas pouco meses. Ele também afirmou que a empresa nunca prestou nenhum tipo de serviço para entidades privadas nem públicas. Disse ainda que as contas do convênio de R$ 1 milhão do Ministério da Ciência e Tecnologia para a Muito Especial que ele
intermediou já foram prestadas e que não há nenhuma irregularidade.

Outro lado


O deputado Júlio Delgado (foto) disse não conhecer Ronaldo Sena nem Ubirajara. Ele contou que destinou a emenda para a Ação Social Luz da Manhã porque uma pessoa, chamada Xeina, foi ao seu gabinete apresentar a ONG. “Ela levou a documentação de registro da ONG e me apresentou os trabalhos feitos em outros estados, como Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, além de Minas”, afirmou. O parlamentar disse que ligou para o prefeito de Cataguases para saber se ele teria interesse, com a resposta afirmativa ele pediu a emenda. “A emenda não foi empenhada. Ligaram para o meu gabinete do Ministério da Ciência e Tecnologia para saber se eu queria dar continuidade à emenda, mas como a Xeina não tinha aparecido mais aqui eu disse que não precisava. Foi a única emenda que eu coloquei para essa ONG”, contou. O parlamentar não soube informar o sobrenome de Xeina, mas passou o telefone dela. A reportagem tentou entrar em contato, mas ninguém atendeu as ligações.

Politiquês/português

Emenda parlamentar

De acordo com a Constituição, a emenda parlamentar é o instrumento que o Congresso Nacional tem para participar da elaboração do orçamento anual. Por meio das emendas, os parlamentares procuram aperfeiçoar a proposta encaminhada pelo Poder Executivo, visando uma melhor alocação dos recursos públicos. É a oportunidade que eles têm de acrescentar novas programações orçamentárias com o objetivo de atender as demandas das comunidades que representam. Além das emendas individuais, existem as coletivas, como as de bancada, produzidas em conjunto pelos parlamentares de estados e regiões em comum. Cada ano é determinado o valor a ser gasto. Este ano, os parlamentares terão direito, cada um, a R$ 13 milhões, R$ 5 milhões a mais que no ano passado.