Os países europeus que sediaram uma Copa do Mundo nos últimos 20 anos – Itália (1990), França (1998) e Alemanha (2006) – e outros três países que receberam o megaevento no período – Estados Unidos (1994), Japão e Coréia do Sul (2002) – foram dispensados da instalação de tribunais de exceção, estruturas paralelas de Justiça que a Federação Internacional de Futebol (Fifa) pressiona para ver implementadas no Brasil em 2014. O país que estreou o modelo, e viveu uma série de confusões e distorções jurídicas, foi a África do Sul, na Copa de 2010.
Os africanos atenderam a imposição da Fifa e, agora, o governo brasileiro prepara o terreno para a instalação do mesmo modelo em 2014. A Lei Geral da Copa, em tramitação na Câmara, prevê a criação de juizados especiais, varas, turmas ou câmaras especializadas para o julgamento de demandas decorrentes do evento, de um simples furto a uma disputa comercial. Os tribunais a serem criados funcionariam independentemente da estrutura jurídica já existente.
O Estado de Minas mostrou nessa terça-feira que esses tribunais de exceção são alvo de uma saraivada de críticas, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Marco Aurélio Mello disse ser "impossível" imaginar essa estrutura no Judiciário brasileiro. Já o ministro Gilmar Mendes considera que os tribunais concorreriam com os juizados especiais já criados, alguns dentro de estádios de futebol.Nessa terça-feira , foi a vez de o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, criticar a proposta. "Isso não faz sentido, agride a soberania nacional. Os tribunais privilegiam os interesses da Fifa, que se acha a dona do mundo."
Um levantamento do Estado de Minas com especialistas em direito desportivo e profissionais que atuaram em Copas passadas revela que os tribunais de exceção só existiram na África do Sul. Uma legislação especial chegou a ser criada para garantir o funcionamento deles. Uma das distorções registradas foi o tratamento diferenciado a turistas brancos e negros. As varas ficaram sobrecarregadas, como conta o advogado Eduardo Carlezzo, que esteve na África do Sul para a Copa do Mundo. Ele conta que não conseguiu assistir a um jogo da semifinal porque o avião em que estava foi impedido de pousar na cidade de Durban, em função do congestionamento aéreo. "Pensei em acionar um desses juizados especiais, mas desisti depois de ver a bagunça que existia. Perdi o jogo e US$ 600, valor do bilhete."
Iniciativa
A Fifa sustenta, em resposta ao Estado de Minas, que a iniciativa dos tribunais de exceção "partiu do próprio governo da África do Sul". "Segurança é um assunto que diz respeito ao país-sede. A Fifa tem confiança nas autoridades brasileiras no que diz respeito a isso." Reuniões entre representantes da Fifa, da Casa Civil e do Ministério do Esporte, a partir de amanhã, vão definir ajustes na Lei Geral da Copa. "A Fifa está trabalhando em conjunto com as autoridades do país-sede para chegar a uma solução apropriada que irá garantir o necessário para um evento bem-sucedido e que ao mesmo tempo respeite a legislação local", diz a entidade, por meio da assessoria de imprensa no Brasil.
O governo evita comentar o assunto. Os órgãos responsáveis atribuem uns aos outros a responsabilidade pela análise do tema. Advocacia Geral da União (AGU) e Casa Civil, ligada diretamente à Presidência, sustentam que quem deve se pronunciar sobre os tribunais de exceção é o Ministério do Esporte. "A Lei Geral da Copa já contempla as exigências da Fifa", limita-se a dizer o ministério, por meio da assessoria de imprensa.
O governo da Alemanha, em 2006, modificou algumas leis em função da Copa. Foi o caso da suspensão temporária de um tratado que permite que cidadãos europeus circulem sem passaporte na Europa. Não foram instalados tribunais especiais de Justiça. "A Alemanha mudou muita coisa por conveniência própria. Eles temiam muito o terrorismo e a imigração ilegal", diz o advogado Claus Aragão, especialista em direito desportivo e internacional.
Em busca de acordo
O relator da Lei Geral da Copa, deputado Vicente Cândido (PT-SP), vai procurar os estados e municípios para tentar um grande acordo em relação a questões polêmicas relativas à Copa do Mundo, como a venda de ingressos com meia-entrada e a permissão de venda de bebidas alcoólicas em estádios. Esses assuntos têm sido abordados até o momento por leis estaduais e municipais, e o governo federal tentava ficar de fora do debate. "Acho melhor tentar um ’acordão’. Acho que dá para trabalhar nessa direção", disse o relator.