Jornal Estado de Minas

Governo, PF e Justiça "ignoram" fraude no bolsa família

Funai, ministério que rege o Bolsa-Família, Judiciário, Polícia Federal e cartórios têm o mesmo discurso: conhecem o golpe, porém não conseguem criar mecanismos de controle

Daniel Camargos
Benjamin Constant, Tabatinga (AM) e São Miguel do Iguaçu (PR) – Todas as esferas públicas envolvidas com os índios nas regiões de fronteira conhecem o golpe usado para que índios estrangeiros se nacionalizem mas lavam as mãos e dizem que não é possível fazer nada. Judiciário, Polícia Federal, cartórios e prefeituras reconhecem o fluxo migratório oportunista e cada um apresenta uma justificava para a inércia diante da fraude. A Fundação Nacional do Índio (Funai), apontada por todos como a principal responsável, tenta minimizar os problemas.
Na análise do coordenador de proteção social da Funai, Francisco Oliveira de Souza, as falsificações acontecem porque os índios estrangeiros querem os benefícios oferecidos pelo governo brasileiro. “Muitos têm parentes do outro lado. Quando percebem que a família que mora aqui recebe recursos, eles querem também”, avalia. Souza garamte que a Funai tenta fazer a distinção da origem, no momento da emissão do Rani. “A quantidade dos que fazem errado é muito pequena”, justifica o coordenador de proteção social. Ele também tenta minimizar as fraudes dizendo que o critério da etnia é feito pelo reconhecimento dos pares, ou seja, depende dos próprios índios. “Se há desvio é com a conivência dos indígenas da comunidade”, acusa.

Souza faz uma digressão histórica e explica que o fato de um indígena nascer em um dos países vizinhos não é relevante para a etnia. “Os limites internacionais foram marcados pelos brancos”, ressalta. Além disso, na visão dele, muitos não sabem precisar em qual lado da fronteira estão. A Funai estuda uma forma de diminuir as fraudes, mesmo não considerando o golpe abrangente. “Queremos formar um banco de dados com todos os registros indígenas”, defende, dizendo que só assim seria possível cruzar as informações com as entidades que representam indígenas de outros países.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) informa que nada pode fazer. “Se o cidadão está documentado como residente no território nacional e preenche todos os requisitos para ser incluído no Cadastro Único, e sendo a documentação autêntica, o gestor municipal não pode negar o cadastramento e o MDS não pode impedir que ele seja selecionado como beneficiário do Bolsa-Família”, informa nota divulgada pelo ministério. _

A juíza Kathleen Gomes, diretora do Fórum de Tabatinga, também responsável pelas questões da vizinha Benjamin Constant, indeferiu o pedido de registro de nascimento de um índio colombiano há duas semanas. “Era um senhor, que chegou com o Rani com data recente. Queria o documento para conseguir a aposentadoria. Senti que havia fraude e não autorizei”, destacou. Na análise da juíza, a forma de obtenção do documento é propícia às falsificações. “Se aconteceu nesse caso pode acontecer em outros”, especula.

Em Tabatinga, mais de 2 mil índios recebem o Bolsa-Família, o que corresponde a quase metade dos beneficiados na cidade: 4.148. De acordo com o coordenador do programa na Prefeitura de Tabatinga, Eguerton Fernandes, a administração pode apenas cobrar os documentos e o cumprimento das regras determinadas pelo Ministério de do Desenvolvimento Social e Combate à Fome , como presença dos filhos na escola e vacinação. O mesmo acontece em São Miguel do Iguaçu, no Paraná. De acordo com a gestora do Bolsa-Família na prefeitura, Clair Bolles, “na aldeia tem paraguaio se fazendo de indígena para receber o benefício”. Mesmo tendo conhecimento, ela diz não poder fazer nada, pois o que a prefeitura exige são os documentos.

Registro na base da palavra


Na entrada do cartório de primeiro ofício de Tabatinga, logo na porta um tapete dá as boas-vindas com uma mensagem em espanhol: bienvenido. O tabelião José Aroaldo, responsável pelo cartório de primeiro ofício, revela que há uma orientação da Corregedoria de Justiça para que eles prestem “muita atenção” ao registrar os índios. “Até descobrir, tem que entrevistá-los muito. Mesmo falando em tikuna é possível perceber um pouco de sotaque espanhol”, afirma Aroaldo. Nesse caso ele conversa também com as testemunhas e se não se convencer repassa a decisão para a juíza. “Se me convencer eu tiro o documento”, afirma Aroaldo.

O tabelião responsável pelo cartório do segundo ofício de Tabatinga e primeiro ofício de Benjamin Constant, Abdias Pereira de Oliveira, explica que uma dificuldade é que os índios que fraudam alegam falar somente a língua do seu povo – no caso, Tikuna – e contam com um tradutor, que atua sabendo do golpe, para conversar com o tabelião. “O Brasil tem tudo: saúde, educação, aposentadoria e um monte de benefício. Por isso, eles ficam tentando se passar por brasileiros. Quando percebo, não faço a certidão e levo o caso para a juíza, mas nem sempre é possível”, explica Abdias.

Entretanto, o tabelião reconhece um vício de origem. “Se eles têm o Rani eu não tenho o que discutir”. Recentemente o cartório fez uma campanha de registro em Benjamin Constant e expediu a documentação para 1,5 mil índios. “Visitei 19 comunidades afastadas e vi apenas um posto da Funai. Não tem como o funcionário conhecer tudo. O registro é feito na base da palavra”, detalha Abdias.

Sem controle O delegado da Polícia Federal de Tabatinga, Gustavo Pivoto, entende que falta um controle maior dos órgãos do governo federal, principalmente da Funai. Na delegacia regional existem diversos inquéritos que investigam falsificações de documentos realizadas pelos índios da região. “Tem indígena responsável pelo cadastro que quer se eximir da responsabilidade”, lamenta o delegado.