O Congresso tem 594 parlamentares, mas, para aprovar causas inquestionavelmente populares e que vão contra o corporativismo da Casa, tem sido necessário acionar efetivo muito maior. O fim de 2011 marca os 20 anos da apresentação do primeiro projeto de iniciativa popular, que, a exemplo do Ficha Limpa, só passou no Legislativo graças à pressão de milhões de brasileiros, engajados em abaixo-assinados. Embora previstos na Constituição de 1988 e capazes de produzir mudanças importantes no país, trata-se de recursos ainda pouquíssimo empregados. De lá para cá, só quatro viraram leis. A expectativa é de que a internet se torne canal para alavancar mais iniciativas.
Entidades que atuam na área de habitação, como a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), entregaram nas mãos do então presidente da Câmara dos Deputados, Ibsen Pinheiro, o primeiro projeto de iniciativa popular em 1991. A proposta criava o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e, apesar do apelo expresso por mais de 1 milhão de assinaturas de brasileiros, tramitou por 13 anos até virar lei. “Foi uma luta, mas ficou uma lição: quando a sociedade se organiza, é capaz de interferir na gestão pública. Quando entregamos as assinaturas, o Ibsen quase pulou da cadeira. Emplacar nossas vontades foi um susto para os parlamentares”, lembra o presidente da UNMP, Donizete Fernandes de Oliveira.
A força dos projetos de iniciativa popular, no entanto, foi testada poucas vezes. Apenas cinco propostas foram encaminhadas ao Congresso, sendo quatro aprovadas e uma em tramitação. Quem já conseguiu emplacar uma matéria atribui o pouco uso do instrumento à dificuldade de recolher mais de 1,3 milhão de assinaturas, como prevê a Constituição Federal, em prol do mesmo tema. “É necessário ter uma instituição forte para alcançar as assinaturas necessárias. Na época, a Campanha da Fraternidade, promovida pela Igreja Católica, tinha o título Onde moras, que tratava sobre a necessidade de moradia. E apoiaram o movimento, montando bancas para assinaturas nas próprias igrejas”, relata Donizete.
Para ele, o segredo das outras propostas que se tornaram lei é o mesmo. Uma delas, a primeira a ser aprovada pelo Congresso, é a Lei 8.930/1994, que caracteriza chacina liderada por esquadrão da morte como crime hediondo. A norma é resultado da pressão de um movimento criado pela escritora Glória Perez, amplamente divulgado pela mídia. Outro exemplo é a Lei 9.840/99, que prevê a cassação do candidato que tentar comprar votos de eleitores. A proposta teve o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que também fez campanha pela aprovação da Lei da Ficha Limpa, no ano passado.
Desvio
Apesar da comemoração pelos 20 anos de sua apresentação, o primeiro texto carrega um “desvio de propósito” que, apesar do tempo, se manteve nas outras propostas: ele teve de ser adotado por um parlamentar, que o protocolou em janeiro de 1992, já que a Secretaria-Geral da Câmara dos Deputados não tem instrumentos para conferir os milhões de assinaturas exigidas pela Constituição Federal. As outras três leis com origem popular também têm parlamentares ou presidente da República como “autores”. A forma “torta” foi negociada entre população e Congresso para evitar a paralisação da tramitação das propostas pela inviabilidade de aceitar as assinaturas apresentadas.
Para os “verdadeiros” autores das propostas, assinadas ou não por parlamentares, o que importa é se ficou no papel ou não. Segundo Donizete, o programa federal Minha casa, minha vida acabou ocupando o papel da Lei 11.124, sancionada em 2005, ao receber os recursos para habitação. “Mas não há derrota. O mais importante é que conseguimos colocar o tema na pauta das prioridades da sociedade brasileira. Valeu a pena esperar 13 anos para virar lei”, comenta o presidente da UNMP.