Passados pouco mais de 10 anos desde a implantação dos primeiros assentamentos de trabalhadores rurais nas regiões do Alto Paranaíba e do Triângulo Mineiro, o que se vê em 8,5 mil hectares que deveriam beneficiar 252 famílias é o retrato de um modelo falido de reforma agrária. Na imensidão dessas áreas de terras férteis, pouco ou quase nada é produzido. Elas se transformaram em negócio imobiliário e de lazer, o que passa longe de sua finalidade social: garantir a subsistência do homem do campo. Muitos dos sítios destinados aos sem-terra no município de Ibiá – alguns deles com mais de 30 hectares e com água em abundância – foram vendidos pelos assentados e hoje se transformaram em ranchos de pesca ou para descanso nos fins de semana. Outros foram simplesmente abandonados.
Para fazer dinheiro com as terras da União, vale tudo. Em Ibiá, os terrenos abrigam, além dos ranchos, igrejas evangélicas e pequenas mercearias. A negociata frenética dos lotes ocorre desde a criação dos assentamentos, no fim da década de 1990. Há muitos casos de áreas que já estão em seu terceiro ou quarto “dono”. Para acabar com a farra, a Procuradoria da República propôs ação civil pública, com pedido de liminar, para a imediata retomada das terras pelo Incra e ainda paralisação da compra de terras e desapropriações até que o problema seja resolvido.
O comércio ilegal dos lotes dos assentamentos dos trabalhadores rurais do Alto Paranaíba atraiu até mesmo o jogador de futebol Danilo Gabriel de Andrade, meio-campo do Corínthians. Natural de São Gotardo, cidade vizinha de Ibiá, ele realizou seu desejo de ter uma terrinha para curtir à beira do rio seus dias de descanso. O problema é que o terreno escolhido para a compra era parte do assentamento de trabalhadores rurais de Morro Alto, criado em 1999, em Ibiá. Danilo tem vizinhos que também transformaram a área em local de descanso. Durante a semana, os únicos ocupantes dos lotes são algumas cabeças de gado e cães sarnentos.
O assentamento Morro Alto foi idealizado para abrigar 40 famílias de trabalhadores rurais, distribuídas em 1,3 mil hectares. Na cidade, todos sentem orgulho de o jogador famoso ter escolhido a cidade para seu lazer e falam sem qualquer constrangimento. “Fica lá nos sem-terra”, diz um frentista, em referência ao assentamento dos trabalhadores rurais. Emerson Santos, cunhado de Danilo e administrador de seus negócios, confirma a compra do rancho e admite que não tem documentação da posse da terra. O terreno teria sido adquirido em 2005 por familiares que moram em Ibiá e desconheciam a situação irregular da propriedade. “O terreno é pequeno e usado apenas para o lazer da família”, diz.
Tremores
A dona de casa S.G. – casada e mãe de dois filhos já criados – vive em um lote que deveria ser o assentamento Treze de Maio, também em Ibiá, e sente tremores só de imaginar que não tem direito à documentação da terra, que adquiriu de beneficiários da reforma agrária. Por capricho do destino, mesmo com a terra de pouco mais de 24 hectares, seu marido, V., continua trabalhando para manter viçosa a lavoura de um próspero fazendeiro da região. Na terra, que o casal ocupa há pouco mais de um ano, existem apenas algumas vacas, para ajudar a lembrar que ali é uma propriedade rural. S., que cultiva um belo jardim e cuida de vários cachorros, conta que tinha casa na cidade. “Não queria isso aqui, mas meus filhos se casaram e tivemos que arrumar um lugar maior”, confessa.
Sabe que não terá a documentação porque o comércio da terras no assentamento não tem suporte legal, mas espera que o governo dê uma “ajuda” para um final feliz. No assentamento Treze de Maio, dos 10 lotes com 392 hectares destinados à agricultura familiar, nenhum vem sendo usado corretamente pelos beneficiados. Ao lado de S. proliferam também ranchos de pesca. Como o Incra já notificou os proprietários da ilegalidade, o local se transformou em um cenário de filmes de terror, com ruínas de casas, carcaças de carros abandonados e objetos largados sobre mesas cobertas de pó. Entre os restos, ainda sobrevivem algumas cabeças de gado que se alimentam do mato que cresce no lote e bebem a água do rio.
Jeitinho
A casinha de paredes brancas, localizada às margens da rodovia que liga Ibiá a Araxá, é o sonho de muitos. Nem precisava estar em um terreno com três nascentes de água. Ali, os proprietários do imóvel, o casal C.M. e E., vivem há 10 anos, no lote do assentamento Santo Antônio. Eles foram beneficiados pela reforma agrária, mas não veem a hora de ir embora para São Paulo. “Depois de 10 anos podemos vender as benfeitorias e voltar para casa”, diz E. Ela conta que nunca foram trabalhadores rurais, mas como tinham parentes na cidade de Ibiá, fizeram instrução no sindicato e conseguiram o terreno. C, que é servidor municipal, diz que nunca cultivou a terra. Tentou o gado e não deu certo e depois galinhas, também sem sucesso. Ele acredita que já cumpriu sua parte no trato com o Incra e quer negociar a terra, mesmo sem o título definitivo, por R$ 150 mil.
Por um terço disso, R$ 50 mil, o assentado J.P., há 11 anos no projeto Quebra Anzol, confessa que também comprou o lote ao lado do seu para sua filha viver com o marido, em 2008. “Comprei porque o dono estava com a mulher doente e não pôde tocar mais a terra. Depois, servidora do Incra me avisou que isso era proibido, mas deixaria passar dessa vez”, conta. Desde o início do ano, o instituto vem desenvolvendo uma campanha para conscientizar a população de que compra de lotes da reforma agrária é crime.