Sissi, Gilse, Rosário e Laudelina, personagens do livro As moças de Minas, de Luiz Manfredini, são mais do que isso. São protagonistas da história recente do Brasil. Elas lutaram para derrubar a ditadura, foram presas, torturadas e viveram na clandestinidade. Militantes, em Belo Horizonte, na época em que a presidente Dilma Rousseff também lutava na capital mineira para derrubar a ditadura, as quatro compartilham o mesmo sentimento, que funde orgulho e sensação de dever cumprido. No livro, Manfredini relata o diálogo de um torturador com Gilse, em 1969: “Só quero avisar uma coisa: por mais que queiram, vocês não têm condições de enfrentar. Pense nisso, moça: nós temos o Estado a nosso favor, a força militar. Vocês estão em nossas mãos. Não contem com a defesa. E digo mais: vocês são mulheres e a barra aqui poderá ficar muito pesada”. Ao que Gilse respondeu: “Nós vamos virar a mesa”.
Hoje, o país é comandado por uma mulher, que também passou pela “barra pesada”. Sissi, Gilse, Rosário e Laudelina foram cruelmente torturadas, pois os militares queriam informações sobre a Ação Popular (AP), grupo do qual elas faziam parte. Porém, o juízo da história pesa em favor delas e Gilse Cosenza Avelar não tem dúvida de que a luta compensou, apesar das imensas dificuldades. “Era preciso acabar com a ditadura e construir um novo Brasil. Éramos conscientes de que enfrentávamos um poder tirânico bárbaro, mas, hoje, não tenho medo de morrer. Se eu morrer agora, morro com a certeza de que minha vida valeu a pena”, afirma Gilse. Ela tem certeza de que a “mesa virou” e entende que a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi uma “inversão do rumo histórico que era ditado desde as capitanias hereditárias”. Na análise de Gilse, a companheira Dilma avança no rumo de Lula, mas tem que enfrentar uma crise internacional severa. “Ela tem um desafio maior do que o do Lula”, entende Gilse.
O livro de Manfredini conta a história de mulheres que têm a mesma trajetória das que cercam Dilma no poder hoje. “Quem iria imaginar que uma dessas mulheres se tornaria presidente? É uma geração que, se não teve a chance de alcançar o objetivo final, que é o socialismo, tem a oportunidade de colocar o país no rumo”, avalia Luiz Manfredini, autor do livro. A obra narra movimentações políticas das quatro e também de Loreta Valadares, que morreu em 2004. Detalha como ocorreram as prisões e as tenebrosas torturas.
A AP, organização da qual elas faziam parte, surgiu dos grupos de jovens atuantes da Igreja Católica. Um dos fundadores do movimento foi o hoje tucano José Serra. A AP tinha por caminho integrar os militantes com os operários para difundir a ideologia socialista. Os militantes moravam no campo e próximos às fábricas, onde interagiam com as atividades profissionais e tentavam incutir a ideologia socialista nos colegas.
AULAS PARA OS OPERÁRIOS
Sissi, a Delcy Gonçalves de Paula, trabalhava como professora de português no Bairro Eldorado, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e dava aulas para operários. Lembra que passava o dia com as famílias, fazia piqueniques e durante todo o tempo destacava a importância de mudar a realidade. Depois que saiu da prisão pela segunda vez, Sissi foi dividir apartamento com a agora recém-empossada ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Eleonora Menicucci.
“Quando deixei a cadeia e voltei para Belo Horizonte, fui morar sozinha em um quarto de pensão no Centro. Encontrei com a Eleonora, por acaso, que me chamou para morar com ela e o marido em um apartamento na Rua Cristina, no Santo Antônio”, lembra Sissi. As duas se conheciam do curso de ciências sociais da UFMG. Ambas lutaram contra a ditadura. Enquanto Sissi seguiu na AP, Eleonora foi para a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop).
Quando começou na militância a presidente Dilma também integrava a Polop, depois foi para o Comando de Libertação Nacional (Colina) e na sequência para a Vanguarda Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Participou de ações radicais, foi presa, torturada e se fixou no Rio Grande do Sul, onde iniciou a carreira política.
Sissi avalia que, apesar do passado, o desafio da presidente é complexo. “Temos uma sociedade que não permite fazer mais. Todas as quedas de ministro refletem isso. Como ela vai montar um governo com essas pessoas que estão aí? Procura um, procura outro e sempre tem problema”, reflete Sissi, que se aposentou recentemente depois de ser professora de ciências políticas na PUC Minas.
Já Gilse, depois que saiu da prisão, viveu alguns anos como clandestina em São Paulo. Trabalhava como fotógrafa e tinha outra identidade. Com o fim da opressão, pode mostrar a cara e assumiu postos de comando no PCdoB. Foi dirigente partidária no Ceará e em Minas Gerais, mas em 2008 passou por problemas de saúde e diminuiu o ritmo da militância. O livro também conta a história da filha de Gilse, Juliana, que nasceu pouco antes de ela ser presa. Enquanto a mãe estava na prisão, Juliana ficou com a tia Gilda, casada com Henrique de Souza Filho, o cartunista Henfil. “Criei minhas duas filhas na clandestinidade”, lembra Gilse.
Laudelina Carneiro é a mais nova entre as cinco personagens do livro. Atualmente, é coordenadora da atenção à saúde da Secretaria Municipal de Saúde, em Embu das Artes (SP). Ela atuava na AP em São Paulo, foi presa e depois transferida para Belo Horizonte. Também não esconde a felicidade de ter uma companheira de luta na Presidência. “Ela tem condições de fazer grandes avanços, mas é uma dificuldade enorme em um país com forças políticas retrógradas tão fortes”, afirma. Porém, se pudesse dar um conselho, Laudelina pediria à presidente mais investimento em saúde pública.
Já Maria do Rosário da Cunha Peixoto diz que não ousaria dar um conselho à presidente. “Tem muitos assuntos no país que precisam entrar em pauta, mas não sou eu quem deve dizer em qual momento isso deve ser feito”, afirma. Rosário tem 70 anos e é coordenadora da pós-graduação de história na PUC São Paulo. Depois de militar, ser presa e torturada, ela continua com o desejo de revolução vivo. “O socialismo é possível, mas vamos ter que batalhar muito para construir. Mas sem fórmulas prontas, pois toda construção tem que ser coletiva. Como historiadora, ficaria muito triste de saber que o capitalismo é eterno”, entende Rosário.
O autor
Luiz Manfredini é jornalista e faz parte do Partido Comunista do Brasil, em Curitiba (PR). A segunda edição, pela Editora Ipê Amarelo, é de 2008, sendo que o livro foi publicado originalmente em 1989. Manfredini também fez parte da Ação Popular e foi preso quatro vezes durante o regime militar. No fim do ano passado, lançou um livro de ficção chamado Memórias da neblina, que também trata dos anos de chumbo.