Insatisfeitas com o projeto de lei complementar que regulamentou a Emenda 29, entidades ligadas àsaúde querem buscar nas ruas o apoio para que sejam modificadas as regras definidas pelo Congresso e governo federal. A proposta aprovada no Senado em dezembro de 2011 e sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT) no mês passado não agradou às associações dos profissionais da saúde, conselhos regionais de medicina e secretarias municipais e estaduais. Isso porque foram vetados 15 dispositivos do texto original, entre eles a proposição que definia um percentual mínimo para os gastos da União com o setor. A ideia do movimento é emplacar um novo projeto de iniciativa popular que prevê o investimento mínimo de 10% das receitas anuais do governo federal para melhorar a saúde pública. Hoje o montante aplicado fica próximo de 7%. Os formulários de assinatura deverão começar a circular em março nas ruas das principais cidades brasileiras e os organizadores esperam conseguir pelo menos o dobro dos nomes necessários para que a medida possa ser levada a Brasília.
No movimento está a Associação Médica Brasileira (AMB), que lançou a campanha oficialmente no início deste mês com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, Conselho Federal de Medicina e das secretarias municipais e regionais da saúde. “Esta é uma iniciativa que parte do povo brasileiro, não só dos médicos ou setores ligados à saúde. Precisamos mostrar ao governo federal que a regulamentação da Emenda 29 não foi como a população necessita e que a saúde pública deste país precisa sim de mais recursos”, explicou Florentino Cardoso, presidente da AMB.
A mobilização acontece em momento de duras críticas ao governo pela decisão de contingenciar R$ 5,4 bilhões no orçamento anual de 2012 previstos para a saúde. O anúncio feito pela equipe econômica do Planalto na quarta-feira desagradou a entidades ligadas ao setor. No dia seguinte ao anúncio, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) divulgou carta questionando a medida e pedindo que Dilma "fique atenta a seus compromissos de campanha, priorize a saúde e não proceda o contingenciamento das verbas previstas no orçamento".
Além do patamar mínimo para investimentos, o projeto prevê que os recursos para a saúde sejam repassados em uma conta única, de forma a facilitar o controle dos investimentos e a fiscalização. Para que a proposta seja enviada ao Congresso, o movimento precisa coletar cerca de 1,5 milhão de assinaturas, número correspondente a 1% do eleitorado nacional, distribuído em pelo menos cinco estados (0,3% dos eleitores de cada um).
Na justificativa para a aprovação da nova proposta, foi anexada uma comparação produzida pela World Health Report 2010 (Relatório Mundial da Saúde) sobre a participação pública no financiamento da saúde entre países da América do Sul, em que aponta o Brasil como o país que menos investe no setor. O texto ressalta também que a União tem diminuído os valores destinados à saúde, proporcionalmente a estados e municípios. “Se neste ano já tivéssemos os 10% da receita corrente da União, a saúde passaria dos R$ 72 bilhões para R$ 107 bilhões. Os países sul-americanos, europeus, da América do Norte e, inclusive, a média dos países africanos investem mais do que o Brasil, quando avaliamos o percentual do PIB, na saúde. Precisamos mudar essa política de subfinanciamento”, afirmou Florentino.
Trabalho organizado
O movimento por mais verbas para a saúde também ganhou a adesão dos conselhos das secretarias municipais e estaduais de saúde, que se consideram prejudicados com a indefinição do percentual que deve ser investido no setor pela União. “Sem essa definição o planejamento para o setor se torna muito mais complicado. O Brasil destina 8,4% do PIB para a saúde, mas desse total 58,4% são gastos privados e 41,6% vêm do poder público. Tem coisa que não dá para fazer sem recurso. Para informatizar um hospital e tornar os atendimentos mais eficientes ou investir em equipes multidisciplinares, é preciso recursos”, cobra o secretário municipal de Belo Horizonte, Marcelo Gouveia Teixeira.
Na capital mineira já foram realizadas duas reuniões entre a secretaria municipal, sindicatos e conselhos da área da saúde para discutir as mudanças propostas. Nas próximas semanas integrantes do movimento vão se reunir com representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pastores evangélicos para apresentar o projeto. “Desde o momento em que foi retirado do projeto o patamar mínimo a ser investido pela União, começaram a surgir vários movimentos para criar uma nova proposta. Será fundamental um trabalho organizado das entidades na coleta de assinaturas”, afirma Marcelo Gouvêa. Segundo ele, depois de muitas discussões entre associações civis e secretarias municipais e estaduais, ficou claro que nada melhor do que um projeto de iniciativa popular, que vai envolver um grande número de pessoas e abrir um diálogo direto com a sociedade.
Como ficou?
Emenda 29
A Constituição Federal de 1988 determinou que, por meio de lei Complementar, seriam definidos os percentuais que a União, os estados e os municípios aplicariam na área de saúde. As discussões sobre o tema começaram em 1991 e 1992, mas somente em 1999 a Emenda 29 foi votada, e sancionada no ano seguinte. No texto ficou estipulado que os estados deveriam destinar 12% do seu orçamento e os municípios, 15%. Para a União não foi definido um valor mínimo a ser investido, mas foi estipulado que seriam aplicados os valores gastos no ano anterior mais a variação do Produto Interno Bruto (PIB) de um ano para o outro. Essas regras valeriam até 2004, quando deveria ser elaborada uma lei definitiva regulamentando a matéria. As discussões sobre os recursos destinados à saúde voltaram ao debate político em dezembro de 2007, quando a União foi derrotada na tentativa de prorrogar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Passados quatro anos de discussões, a Câmara dos Deputados aprovou a Emenda 29 em setembro de 2011. No Senado, ela foi aprovada em dezembro.
Saiba mais
Projetos de iniciativa popular
Desde 1988, quando a Constituição assegurou o direito de a sociedade apresentar projetos de lei, quatro propostas foram convertidas em lei. A última delas foi confirmada na semana passada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e vai impossibilitar a candidatura de políticos condenados por decisão colegiada. O primeiro projeto de iniciativa popular foi aprovado no Congresso em 1994, caracterizando chacinas realizadas por esquadrões da morte como crime hediondo. A proposta teve apoio de um movimento criado pela escritora Glória Perez, cuja filha, Daniela Perez, fora assassinada dois anos antes. Em 1999, por meio da mobilização de entidades civis, foi aprovada uma lei que tornou crime passível de cassação a compra de votos. Já em 2005, os parlamentares confirmaram a criação do Fundo Nacional da Habitação, que tinha sido protocolado em janeiro de 1992. Foi a matéria com mais longa tramitação entre as iniciativas populares.