"Os militares, inclusive Geisel, defenderam a repressão, mas o regime de terror de Estado teve participação ativa da mídia e de empresários. Essa é a história que falta levantar. Espero que a Comissão da Verdade avance nesse sentido", pressiona Celina. Geisel, explica ela, tentou driblar e desmantelar a esquerda e a extrema direita durante o seu governo. "Teve êxito no primeiro combate, pois a esquerda se desmantelou, mas a extrema direita se manteve ativa e operante até o atentado no RioCentro, em 30 de abril de 1981, durante o show do 1º de Maio", esclarece. Faltaria ouvir, portanto, empresários que estão vivos e podem esclarecer o funcionamento das masmorras.
"A sociedade que participou dessa repressão precisa e deve ser ouvida, como ocorreu na Alemanha pós-Hitler e como ocorre hoje na Espanha em relação à ditadura de Franco." Celina está convencida de que, assim, a história será resgatada e de que a anistia estará em xeque e poderá ser revista. "O governo do general João Baptista Figueiredo foi o governo dos órgãos de inteligência e o texto da Lei de Anistia levou em conta essa realidade". A historiadora não vê esse resgate da memória como sinal de revanche, mas como dever de Estado, em nome da verdade histórica.
Falta de comando
Maria Celina contou que não se surpreendeu na manhã de 1993, quando Geisel defendeu a tortura, porque "o fez em nome da corporação, do Exército". Descendente de alemães, o general, que nasceu em Bento Gonçalves (RS) em 3 de agosto de 1907, teve formação luterana e guardava profundo respeito à hierarquia. Ao defender a tortura, tratou de dizer que um grupo de militares aprendeu as táticas na Inglaterra durante o governo de Juscelino Kubistchek de Oliveira e que, para evitar mal maior, a tortura se justificava. A confissão, dita em tom seco, tenta justificar a prática ainda negada pelos militares, e será alvo da revisão histórica da Comissão da Verdade. "Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões', defendeu Geisel aos pesquisadores.
O general, apesar de manter a visão corporativa da tropa, disse a historiadora, não se recusou a falar de temas cruciais, como as mortes, durante o seu governo, do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Atribuiu os dois enforcamentos nas dependências da repressão em São Paulo à ausência de comando e diz que o general Ednardo D’Ávila Mello, do II Comando Militar em São Paulo, teria abandonado a tropa para atender a convites da alta sociedade de São Paulo. "Ele ia passear no fim de semana, fazendo vida social, e os subordinados dele, majores, faziam o que queriam. Ele não torturava, mas, por omissão, dava margem à tortura".
Confissões da caserna
Os depoimentos de generais, almirantes, brigadeiros, coronéis e tenentes tomados pelos pesquisadores do CPDOC/FGV deram origem aos livros Visões do golpe: a memória militar sobre 1964; Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão e A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura, todos coordenados e organizados por Maria Celina com Celso Castro e Gláucio Soares. Já trechos do depoimento do general Ernesto Geisel deram origem ao Dossiê Geisel, livro editado pela FGV, que está esgotado. Apenas para pesquisadores, a FGV franquia o acesso aos depoimentos fonográficos e à transcrição completa do depoimento do general, morto em 1996. O testamento em que fala abertamente da vida pessoal e militar e de suas impressões sobre o Brasil e a política foi revisado, página por página, pelo próprio general até 1996, quando morreu em 12 de setembro, vítima de câncer. A filha, Amália Lucy Geisel, também historiadora, foi quem deu aval para a FGV divulgar o documento.