“Hoje vemos uma exagerada concessão do sigilo. Nem sempre ele é necessário para o sucesso de um processo”, opina o juiz Márlon Reis, presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe). Na avaliação do magistrado, especialmente em casos envolvendo dinheiro público, deve prevalecer o interesse e o direito da sociedade de ser informada. Ele cita como exemplo de abuso o sigilo previsto para as ações de impugnação de mandato eletivo.
Na avaliação do presidente da seção mineira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Luís Cláudio Chaves, casos envolvendo a malversação de dinheiro público deveriam ter transparência total – mas são frequentemente tratados sob sigilo. “No caso de uso indevido de recursos públicos, você não está diante só de uma questão de direito privado, mas também público”, argumenta o advogado que atua na área de família – ações que tramitam obrigatoriamente em segredo.
O procurador de Justiça e presidente da Associação Mineira do Ministério Público (AMMP), Nedens Ulisses Freire Vieira, defende o segredo na fase de investigação, quando muitas vezes a publicidade dos atos pode prejudicar o resultado final. No entanto, não vê “razoabilidade” na manutenção da regra durante a fase processual. “A não ser que seja para preservar uma vítima ou uma situação excepcional de Estado”, conclui.
Márlon Reis lembra ainda que a discussão é causada pela própria Constituição. O artigo 5º determina que o sigilo pode ser adotado em casos de “defesa da intimidade” ou “interesse social”. Mas o texto é vago ao dizer, em seu artigo 93, que ele pode ser adotado desde que “não prejudique o interesse público à informação”. E o que dizer do artigo 14, ao estabelecer categoricamente que “a ação de impugnação de mandato tramitará em segredo de Justiça”?
INICIAIS Há pouco mais de um ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) acrescentou uma regra ao polêmico segredo de Justiça. O órgão optou por manter em sigilo a identidade de 152 autoridades suspeitas de cometer crimes. Virou regra blindar deputados, senadores e ministros de Estado: mesmo que o processo não tramite em segredo de Justiça, apenas as iniciais de seus nomes serão informadas, o que dificulta um levantamento sobre quais pessoas respondem a ações no tribunal.
Ao adotar a medida, prevista no regimento interno do órgão, a alegação do STF foi de proteger investigações que poderiam correr em segredo de Justiça. Pela regra, o ministro sorteado para relatar a investigação é quem vai analisar se o processo deve correr em segredo de Justiça. Se o relator concluir que não há motivos para a adoção da regra, as iniciais serão tiradas e o nome completo será publicado no site.
Enquanto isso...
… Cartilha sobre sigilo
O presidente da CPI do Cachoeira, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), vai enviar aos integrantes da comissão uma cartilha com as regras do Parlamento a respeito do manuseio de dados sigilosos – um “resumo” dos regimentos internos e dos códigos de ética da Câmara, do Senado e do Congresso. A CPI mista que investiga as relações do contraventor Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, com políticos e agentes públicos e privados recebeu na quarta-feira os documentos do Supremo Tribunal Federal (STF). Na sexta-feira, o Senado instalou uma sala para que os parlamentares possam ter acesso aos dados sigilosos encaminhados pelo STF. Apenas os parlamentares que integram a CPI poderão ter acesso às informações. Para evitar cópias dos dados, o que facilitaria seu vazamento, eles não poderão entrar com celulares, máquinas fotográficas ou filmadoras. Além disso, terão de assinar um termo de responsabilidade para preservar o sigilo das informações, provenientes das operações Vegas e Monte Carlo, ambas da Polícia Federal.
Propostas no Congresso para restringir regra
Entre as dezenas de projetos de leis que tratam do segredo de Justiça em tramitação no Congresso Nacional, pelo menos dois defendem a restrição da regra. O mais recente foi apresentado em abril do ano passado e veda a decretação de segredo de Justiça em qualquer ação questionando ação ou omissão de agente público que seja contrário ao interesse da sociedade, independentemente de haver prejuízo ao erário. Estão enquadrados no projeto detentores de mandato eletivo, integrantes de qualquer um dos poderes, ocupantes de cargo de direção ou assessoramento, servidor público e empregados de empresas que tenham participação da fazenda pública.
A matéria veda ainda o uso apenas de iniciais para identificar envolvidos na ação. Autor da matéria, o deputado federal Jonas Donizette (PSB/SP) argumenta que decretar segredo de Justiça “implica em ocultação daquilo que a Constituição sujeitou à publicidade irrestrita, à transparência, perante os administrados.” Além disso, lembra que o uso do sigilo “mais protege os agentes, tanto público quanto privados, que figuram no polo passivo das ações judiciais”. Ainda de acordo com o parlamentar, a melhor proteção para essas pessoas é o “estrito e rigoroso cumprimento das normas constitucionais e legais”.
O deputado José Otávio Germano (PP-RS) propõe o fim do segredo de Justiça em todos os processos que tenham como réus membros do Poder Legislativo. No texto, o parlamentar alega que o objetivo da matéria é garantir o princípio da publicidade dos atos da administração. “A situação dos agentes públicos não pode ser comparada à dos particulares. O segredo de Justiça tem como principal objetivo garantir o interesse público, e não a simples privacidade do réu”, disse o deputado gaúcho, lembrando que as ações geralmente têm a ver com atos de improbidade, malversação de verbas públicas, formação de quadrilhas e desvio de recursos públicos.
As duas matérias tramitam juntas na Câmara e estão paradas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde o ano passado.
CASOS “ILUSTRES”
Exemplos de processos que tramitam sem ser permitida a divulgação de informações
Mensalão
Deverá ser julgado ainda neste semestre pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O processo, que envolve 39 réus – entre políticos e empresários –, teve decretado o segredo de Justiça para os documentos protegidos por sigilo bancário, fiscal ou telefônico, restringindo a consulta deles aos advogados dos investigados. O material demonstraria a origem estatal de parte dos recursos do mensalão – esquema de caixa 2 nas campanhas eleitorais e pagamento de parlamentares para votar favoravelmente a projetos de interesse do governo.
Déborah Guerner
Presa pelo envolvimento em outro escândalo do mensalão, desta vez o do DEM do Distrito Federal, a promotora Déborah Guerner teve o pedido de liberdade julgado em sigilo. As suspeitas do Ministério Público Federal são de que Deborah teria comprado atestados médicos falsos e sido treinada para simular problemas mentais com o propósito de atrapalhar as investigações de que ela é alvo há três anos, pois teria vazado informações sigilosas da Operação Caixa de Pandora para o ex-secretário de Relações Institucionais do Distrito Federal Durval Barbosa, delator do esquema. Ela é suspeita também de tentar extorquir o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, que foi preso e perdeu o cargo no auge do escândalo.
Nicolau Neto
A tramitação judicial de um dos maiores escândalos envolvendo o Judiciário – milhões de reais desviados na construção do fórum trabalhista de São Paulo – ficou encoberta pelo segredo. No dia do julgamento, foi decretado o sigilo, o que tornou secreta a sessão em que seria lido um documento de 200 páginas. As acusações envolvendo o juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, políticos e empresários foram desde desvio de verbas a peculato e formação de quadrilha. No ano passado, a Justiça Federal condenou vários réus – entre eles o juiz Lalau– a devolver R$ 203 milhões ao erário.
Projeto Tamar
Criado na década de 1980, o Projeto Tamar tinha por objetivo evitar a extinção das tartarugas. No entanto, ação da Advocacia Geral da União (AGU) revelou fraudes e irregularidades que dariam ao Tamar uma isenção milionária de impostos. Na ação, a AGU solicitou à Justiça o bloqueio de bens, o cancelamento do certificado de filantropia e a condenação da entidade por improbidade administrativa – informações obtidas por meio de conversas telefônicas gravadas e documentos apreendidos na Operação Fariseu. Não se sabe muito sobre o andamento processual, que está em segredo de Justiça.
Operação Satiagraha
A imprensa até publicou, mas os dados do inquérito da operação – suposto esquema apontado pela Polícia Federal de desvio de dinheiro e de crimes contra o sistema financeiro – também tramitaram em segredo de Justiça.
Cartunista Glauco
Assassino confesso do cartunista Glauco, 53 anos, e do filho dele, Raoni, de 25, o estudante Carlos Eduardo Sundfeld Nunes foi processado sob segredo de Justiça parcial, decretado em fevereiro do ano passado. Isso significou o veto à presença da imprensa na audiência na qual o jovem, conhecido como Cadu, seria interrogado, além do acesso a determinados documentos dos autos. Pouco mais de um ano depois do crime, a Justiça Federal acatou pedido do Ministério Público do Paraná para que Carlos Eduardo não fosse julgado. O laudo apresentado ao Judiciário mostrou que Cadu sofre de esquizofrenia paranoide, sendo incapaz de perceber a gravidade de seus atos.
Tiririca
Eleito deputado federal com o maior número de votos do país – 1,35 milhão –, o palhaço Tiririca (PR-SP) não teve muito o que comemorar nos primeiros dias depois do pleito. Ele foi acusado de ter apresentado declaração falsa à Justiça Eleitoral sobre a sua alfabetização. Caso fosse mesmo analfabeto, teria os votos anulados e perderia a cadeira conquistada na Câmara dos Deputados. Com a justificativa de evitar “constrangimento”, o juiz responsável pelo caso acatou pedido da defesa do parlamentar e decretou o segredo de Justiça no processo. No final, Tiririca sorriu: teste realizado no Tribunal de Justiça de São Paulo comprovou que ele sabe ler e escrever.
O QUE DIZEM AS LEIS
Constituição Federal
Artigo 5º, LX: “A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
Artigo 14º: a ação de impugnação de mandato tramitará em segredo de Justiça, respondendo o autor, na forma da lei, se temerária ou de manifesta má-fé.
Artigo 93, IX: Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Código de Processo Civil
Artigo 155: “Os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de Justiça os processos:
I – em que exigir o interesse público;
II – que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores”.
Artigo 444: “A audiência será pública. Nos casos de que trata o artigo 155, realizar-se-á a portas fechadas”.
Código Penal
Dos crimes contra a administração pública
Artigo 325: revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação.
Pena: detenção de seis meses a dois anos, ou multa se o falto não constitui crime mais grave.
Código de Processo Penal
Artigo 20: a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
Lei 4.717/76 – Ação popular
Artigo 1º: somente nos casos em que o interesse público, devidamente justificado, impuser sigilo, poderá ser negada certidão ou informação.
Lei 9.296/96 – Interceptação telefônica
Artigo 10: constitui crime realizar interceptação telefônica, de informática ou telemática, ou quebrar segredo de Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão de dois a quatro anos e multa.
Lei Complementar 105/2001
Artigo 1º: as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.