No depoimento pessoal prestado à jovem equipe do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), há uma década, Dilma Rousseff teve paciência de comparar os tipos de tortura e as condições a que foi submetida nos cárceres onde ficou em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, por dois anos e 10 meses, entre 1970 e 1972, durante a ditadura verde-oliva no Brasil. Segundo pincelou Dilma, dentro da Penitenciária Barão de Mesquita, no Rio, ninguém via ninguém. “Havia um buraquinho, na porta, por onde se acendia cigarro”, contou. O procedimento carioca era semelhante ao mineiro: ela ficava sempre sozinha, sendo colocada em uma solitária em Juiz de Fora. “Muitas vezes usavam em mim palmatória. Usaram em mim muita palmatória. Em São Paulo, usaram pouco esse método”, explicou.
Contemporânea de militância estudantil de Dilma (codinome Estela) em Belo Horizonte, mas de vertente oposta, ligada aos movimentos sociais da Igreja Católica, como a Pastoral de Direitos Humanos, a psicóloga Emely Salazar, de 74, confirma o uso da palmatória em Minas. “Um dia levei tanta, tanta palmatória, que meus pés e mãos viraram uma bola. Eu não conseguia ficar em pé no chão. Tive de ser carregada no colo pelo meu torturador, o tenente Marcelo (Araújo Paixão), com a cabeça apoiada no ombro dele. Tive ódio de mim nesse dia”, desabafa Emely, que chega a ter pesadelos até hoje com este episódio. É o mais marcante pinçado de sua longa temporada de quase dois anos na prisão, só que no Dops, em BH.
Outra característica “marcante”, segundo adjetivo empregado na época por Dilma, dos interrogatórios de Minas é que não eram feitos por militares. Os militares apenas acompanhavam. A presidente prossegue: “Em SP, era diferente, os militares interrogavam e o Dops acompanhava. Em SP, chegou a ponto da Oban invadir o Dops. Durante um certo tempo, quem controlou a repressão foi a Polícia Civil, através dos Dops. Na minha época, o Dops era muito forte e os órgãos militares se encaixavam subordinadamente. O delegado Fleury tinha grande poder, que perdeu, depois, para os militares”, disse. Em Minas, segundo a presidente, eles trabalhavam em conjunto. Ela completa a distinção entre as forças da repressão dos três estados: “O processo de subordinação da Polícia Civil pelo Exército não tinha se completado. Já no RJ estava completamente alijada a PC: era a Marinha, Exército e Aeronáutica”.
Números
Como velha e boa militante, em determinado trecho de seu depoimento pessoal, Dilma passa a questionar os termos de sua própria condenação. Com calo de ativista, Dilma subverte os números, questionando a lógica dos militares. “Tive participação política em três estados: comecei em Minas Gerais 90% da minha militância. Só no último ano ficaria a metade (do tempo) no Rio e SP. Fui condenada nos três estados . No Rio de Janeiro, levei um ano e um mês (de prisão), por ter militado oito meses. Em Minas, levei um ano, por cinco anos de militância. Por que isso?”, pergunta Dilma, perante a jovem equipe do Conedh-MG, enviada ao Rio Grande do Sul em 2001, na intenção de tentar convencer a então secretária das Minas e Energia, entre seis outros militantes políticos, a prestar depoimento no processo mineiro.
Dilma foi condenada a um ano de prisão no Inquérito Policial Militar (IPM) em Minas, pelo artigo 36 (pertencer a organização de luta armada), e a um ano e um mês no do Rio. Segundo o livro A vida quer é coragem, lançado em janeiro, contando a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidente do Brasil, o jornalista mineiro Ricardo Batista Amaral revela que, “em São Paulo, o juiz auditor carregou a mão na denúncia – chamou Dilma de “papisa da subversão”, “uma das molas mestras e um dos cérebros dos esquemas revolucionários postos em prática pelas esquerdas radicais” – e obteve a pena máxima: quatro anos. Em novembro de 1972, o Superior Tribunal Militar (STM) reavaliou os processos, fixou a pena total em dois anos e um mês e determinou a soltura da ré. Quando desceu a Torre das Donzelas, Dilma tinha completado dois anos e 10 meses no cárcere. No saldo, nove meses além da pena imposta pelo tribunal militar.
Quando Dilma era só mais uma vítima
Aos 74 anos, Emely Salazar permanece até hoje na ativa na Faculdade de Medicina da UFMG, onde era mais forte a militância política mineira. Ela chegou a ficar quase dois anos presa na carceragem do Dops de BH. Décadas mais tarde, convidada a presidir a Comissão Especial das Vítimas de Minas Gerais (Ceivt-MG), em 2001, Emely deu pouca atenção ao processo de Dilma. Para se ter uma ideia, Emely esqueceu-se de assinar o processo de Dilma, entre dezenas de casos analisados por ela.
“Da turma de esquerda presa naquela época, quase ninguém conhecia Dilma. Ela era a namorada do Galeno (jornalista Cláudio Galeno Lobato), que sairia do país no sequestro do avião para Cuba e mora hoje na Nicarágua). Ele foi preso ao mudar para o Rio”, justifica Emely. Além disso, na época Dilma era apenas secretária das Minas e Energia no Rio Grande do Sul, filiada ao PDT, nem sonhava ser eleita presidente do Brasil.
“Tinha de esquecer de assinar logo o processo da presidente? Só podia ser a Emely”, brinca o filósofo Robson Sávio, hoje professor da PUC Minas e responsável na época por colher o depoimento de Dilma Rousseff. “Na verdade, todos os ex-militantes tinham a mesma importância histórica. Nosso trabalho não era identificar celebridades, mas sim as verdadeiras vítimas da ditadura”, pontua Robson, lembrando que a falta da assinatura não inviabilizou a indenização de R$ 30 mil a Dilma, que receberia a quantia em março de 2002.
“Quem entrou com o pedido de indenização dentro do prazo teve direito a abrir processo. No meio da trabalheira, ainda tivemos de convencer os colegas a fazer o pedido. Muitos estavam desiludidos ou ficavam com medo de falar e de aquilo virar contra eles. Quer saber? Quem sofreu tortura não acredita mais na possibilidade de reparação do Estado”, desabafa Emely. Ela e o então namorado de 22 anos, o médico Herculano Mourão Salazar, que mais tarde se tornaria seu marido, sofreram nas mãos de torturadores. “Anos mais tarde, cheguei a encontrar com o tenente Marcelo (Paixão Araújo) em uma festa de casamento. Comecei a chorar e não acreditei que estava respirando o mesmo ar que ele. Meu marido (que morreu há 10 anos, de um câncer) me mandou ficar quieta. Mas não aguentei. Cheguei perto dele e perguntei: ‘Lembra de mim, tenente Marcelo?’ Ele fez que não sabia e eu emendei: ‘Quem bate, esquece. Quem apanha, não esquece jamais. O senhor já contou para sua família que foi torturador na ditadura?’”, revela emocionada Emely, que parece uma gigante do alto de pouco mais de um metro e meio de altura. (SK)
O que já foi mostrado
O Estado de Minas iniciou domingo uma série de reportagens em que revela com exclusividade documentos, até então inéditos, que comprovam que a presidente Dilma Rousseff foi torturada nos porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava. Os documentos reproduzem o depoimento pessoal de Dilma ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), em outubro de 2001, no qual ela relata com detalhes todo o sofrimento vivido em Minas como a militante política de codinome Estela, aos 22 anos. “Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’ ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina”, contou Dilma na época.
Na edição de ontem, o EM mostrou que bilhetes endereçados a Dilma e interceptados por agentes militares foram os responsáveis por novas sessões de tortura em Minas. Os militares acreditavam que ela teria organizado, no fim de 1969, um plano para dar fuga ao militante Ângelo Pezzuti, que usava o codinome Gabriel. Por causa de 22 bilhetes encaminhados para a militante Estela, um dos codinomes usados por Dilma, ela teria voltado a ser torturada. A série de reportagens iniciada domingo teve repercussão na imprensa internacional. A presidente leu seu conteúdo antes de embarcar para o México, mas preferiu ficar em silêncio.