Jornal Estado de Minas

A tortura de Estela contada por dilma

Conheça a história do dia em que a turma da Dilma caiu

Companheiros de militância da presidente foram surpreendidos pelos militares quando o aparelho no Bairro São Geraldo, em BH, foi estourado, marcando o início do fim do Colina

Daniel Camargos Sandra Kiefer
Antes de o Sol nascer, em 14 de janeiro de 1969, Jorge, Maria, Afonso, Murilo, Júlio, Nilo e Maurício estavam reunidos em uma casa numa tranquila rua do Bairro São Geraldo, Região Leste de Belo Horizonte. Policiais do Dops e da Delegacia de Furtos e Roubos estouraram o portão e, segundo relatos, entraram atirando. A resposta foi no mesmo tom, e o policial que estava à frente morreu baleado por projéteis de uma metralhadora .30. Do lado de fora da casa outro policial morreu. A então militante Dilma Rousseff fazia parte do grupo, mas não participou. “Ela articulava o movimento estudantil do Colina e atuava nos bastidores. Não entrou na linha de frente nem participava das ações armadas”, detalha Jorge Nahas, atual secretário de Políticas Sociais da Prefeitura de Belo Horizonte. A troca de tiros foi o início do fim do Comando de Libertação Nacional (Colina), o grupo de esquerda que chegou a praticar assaltos e pegar em armas para tentar derrubar a ditadura.
Antes da troca de tiros, que acabou em mortes e provocou a prisão do núcleo duro do Colina, os integrantes do grupo assaltaram uma agência do Banco da Lavoura, em Sabará, na região metropolitana. O cerco apertou e o líder do grupo, Ângelo Pezzuti, foi preso. Outro integrante, Pedro Paulo Bretas, também foi capturado pelos militares. “O Bretas era o único que sabia onde ficavam os três aparelhos da Colina”, lembra Jorge. Com a prisão e as recorrentes torturas praticadas nos porões do Exército e da polícia, era uma questão de tempo até os policiais descobrirem o esconderijo da Colina. Os sete decidiram esperar amanhecer para abandonar o aparelho do Bairro São Geraldo. Não deu tempo.

A troca de tiros, que levou à morte de dois policiais, deixando outro militar ferido e também ferindo o militante Maurício Paiva, foi uma espécie de gota d’água para os militares. “O impacto foi muito grande. Os militares ficaram desorientados porque não imaginavam que aquilo poderia acontecer e a repressão aumentou muito”, lembra Jorge Nahas.

O cerco apertou na casa do Bairro São Geraldo e os sete membros da Colina foram rendidos. Eles foram colocados no paredão e os policiais, furiosos com a morte dos colegas, queriam fuzilá-los ali mesmo. “O comandante da diligência suspendeu o massacre, pois seria uma barbárie de prisioneiros rendidos”, lembra Jorge. Ele se recorda de ter, por mais de uma vez, a sensação de que ali seria seu fim. O comandante da operação era o delegado Luiz Soares da Rocha, chefe do temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que se notabilizou pelas torturas praticadas nas dependências do local.

Quem comandava a Delegacia de Furtos e Roubos e também participou da operação foi o delegado Antônio Nogueira Lara Resende, 83 anos, apontado pelas vítimas da ditadura como um dos principais torturadores do país. “Eles eram muito perigosos”, afirma Lara Resende sobre o Colina. O ex-delegado destaca que o subinspetor Cecildes Moreira da Silva deixou a viúva com oito filhos. A outra vítima foi o guarda civil José Antunes Ferreira e o ferido o investigador José Reis de Oliveira. “Meu problema era roubo. Quando era assalto a banco eu me envolvia. Mas no geral mandava tudo para o Dops, comandado pelo Luiz Soares da Rocha”, destaca Lara Resende.

Quem portava a metralhadora Thompson calibre .30 era Murilo Pinto da Silva, irmão do líder, Ângelo Pezzuti. Tia deles, Ângela Pezzuti fala com orgulho dos sobrinhos. “Havia um movimento mundial de jovens, não acontecia somente no Brasil. Eram idealistas e queriam o mudar o mundo, começando pelo Brasil”, afirma. Ela também sustenta que o sobrinho agiu em legítima defesa. “A polícia chegou atirando. O detetive Cecildes chegou atirando e morreu caído em cima das próprias balas”, afirma Ângela Pezzuti.

ENXOVAL E ARMAS Jorge Nahas, como a maioria do Colina, começou a militância na Faculdade de Medicina da UFMG. Ingressou na Organização Revolucionária Marxista de Política Operária (Polop) e depois, como grande parte da Polop, migrou para o Colina. Depois da prisão na queda do aparelho do Bairro São Geraldo, Jorge foi solto um ano e meio depois em troca do embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, sequestrado por militantes. Foi para a Argélia com sua mulher, Maria José Nahas, também do Colina e presa na queda do aparelho em BH. Maria José ficou conhecida, por ser loira e portar uma metralhadora. Na imprensa, entre os militantes e os policiais passou a ser chamada de a “Loira da Metralhadora”. Uma história curiosa do período é que o dinheiro do enxoval de casamento do casal foi revertido para compra de armas.

CLANDESTINIDADECom a perseguição a seus militantes, o Colina chegaria ao fim, logo depois do Ato Institucional 5 (AI-5). “Passei a ser procurado como terrorista no país inteiro, em cartazes pregados em todos os aeroportos e rodoviárias. Meus irmãos passaram a sofrer bullying na escola e meu pai e minha mãe, que eram evangélicos presbiterianos, foram alvo de deboche até na igreja”, desabafa Apolo Heringer Lisboa, que dividia a liderança do Colina com Ângelo Pezzuti. Médico, passou a sofrer de anorexia nervosa ao fugir para o Rio de Janeiro e ser impedido de exercer a profissão, por ser clandestino. “Enfrentei privações morando cinco anos em uma favela no Rio. Cheguei a pesar 64 quilos, pois não tinha fome. Eu me sentia vítima de uma mentira que a ditadura inventou contra o meu grupo e não podia nem me defender. Nunca fui um terrorista”, desabafa Heringer, atual coordenador do Projeto Manuelzão, que vai concluir no fim deste ano o doutorado, aos 69 anos, postergado pelo período vivido na clandestinidade.

FUGA NA MADRUGADA No dia seguinte em que o aparelho do Bairro São Geraldo foi descoberto, Dilma e o marido, Cláudio Galeno, fugiram do apartamento 1001 no Edifício Solar, na Avenida João Pinheiro, na Região Central da cidade. A residência do casal, que já havia deixado de ter a destinação original e estava sendo usada como ponto de encontro pelos militantes do Colina, estava “queimada”. De fato, no momento em que os dois se encontravam dentro do apartamento destruindo documentos da organização, tocou a campainha. O casal foi salvo pelo porteiro, segundo relato que consta do depoimento pessoal de Estela, arquivado no Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG): “Numa noite, no fim de dezembro, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do Dops de BH que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, Rua Goiás”, relata a presidente.

VERDADE E ORGULHO A onda de revisão do passado, motivada pela criação da Comissão da Verdade pela presidente Dilma, não assusta o delegado Lara Resende. “É uma besteira muito grande”, afirma. Já Jorge Nahas tem muito orgulho do que viveu. “Nós atendemos a um chamado histórico. A ditadura não deixava espaço e nós não medíamos as consequências para combatê-la mesmo as chances de vitórias sendo muito pequenas”, acredita. Ele completa: “Estávamos imbuídos de um imperativo moral e claro que sabíamos que o preço a pagar não seria baixo”. Por fim, Nahas acredita que valeu a pena: “A história diz que fomos vencedores. A prova maior é a Dilma, eleita democraticamente presidente do Brasil”.

Os sete da Casa do São Geraldo

Jorge Nahas
Maria José Nahas
Afonso Celso Lana Leite
Murilo Pinto da Silva
Júlio Bitencourt
Nilo Sérgio Macedo
Maurício Paiva