Diante do rigor nos trabalhos da comissão mineira, a arredia Dilma Rousseff não teve saída. Contou, pela primeira vez, ter sido torturada nos cárceres de Minas, e não só em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava antes. E mais. Depois de tirar o nó preso na garganta por 30 anos (ela havia sido torturada em Juiz de Fora, em 1971), Dilma emocionou-se ao revelar ter sofrido uma hemorragia de útero, de tanto apanhar. “Na primeira vez, foi na Oban (Operação Bandeirantes). Me deram uma injeção e disseram para não me bater naquele dia”, descreveu aquela que, nove anos mais tarde, seria a primeira mulher eleita presidente do Brasil.
Dilma contou também ter feito tratamento para conter a hemorragia no Hospital das Clínicas. “Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no fim da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas” , revelou a ex-militante política de codinome Estela, que, apesar do medo de se tornar infértil, não teria problemas para engravidar. A presidente é mãe de Paula, 36 anos, única filha com o companheiro de militância Carlos Franklin Paixão de Araújo. Em setembro de 2010, tornou-se avó de Gabriel, que nasceu durante a campanha presidencial. O Hospital das Clínicas confirma a existência dos arquivos, mas informa que o acesso a eles é permitido apenas com autorização da paciente.
Caroline ajudou a tomar o depoimento de Dilma em Porto Alegre, que foi prestado na sala da Secretaria de Estado de Justiça do governo gaúcho. O testemunho durou em torno de 40 minutos e não foi gravado em áudio nem em vídeo, para não intimidar a vítima e impedir que o material tivesse um uso inadequado no futuro. Durante a madrugada, no computador emprestado do hotel, Caroline repassou o que havia digitado. Sem laptops (caros demais há 11 anos), o depoimento de Dilma foi transferido em antigos disquetes quadrados, depois reutilizados.
Sagitariana convicta, Dilma sempre evitou expor o lado pessoal. Soube separar o privado do público, à frente de movimentos sociais e cargos de governo. Com isso, evitou reviver a tortura, mesmo antes de chegar à Presidência da República e de se empenhar pessoalmente pela instalação da Comissão Nacional da Verdade, em maio. Não consta o depoimento dela no livro Brasil: tortura nunca mais, volumoso estudo sobre a repressão exercida pelo regime militar.
Novamente, Dilma sairia ilesa no livro Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf, de 1998. O repórter só conseguiria que ela lhe desse declarações sobre a tortura em 2003, ao ser convidada para ocupar um ministério no governo Lula. Num dos trechos de maior destaque Dilma fala sobre sangramentos de útero: “Hemorragia mesmo, que nem menstruação. Eles tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército. Encontrei uma menina da ALN (Ação Libertadora Nacional). Ela disse: ‘Pula um pouco no quarto para a hemorragia não parar e você não ter de voltar’”.
Revelações
Mas não só Dilma se abalou no depoimento à comissão mineira quando toca no assunto. Os jovens contratados para ouvi-la também se renderam à emoção. Outras cinco vítimas de tortura política de Minas, que haviam se refugiado em Porto Alegre para escapar da ditadura, foram ouvidas. “Praticamente obrigávamos a pessoa a revelar, no intervalo de meia hora, uma hora, momentos da vida que ela tinha levado 30, 40 anos tentando esquecer. Não era fácil”, lembra a ex-secretária-executiva da comissão, Caroline, que só concordou em participar da reportagem depois de muita insistência. “Eu tinha 25 anos e estava muitas vezes diante de um homem de 70 anos que, em determinado momento, pedia ao filho que o acompanhava para sair da sala. Ele então contava ter sofrido violência sexual durante sua juventude política. Não se tratava de relembrar um passado heroico de militância, mas uma fase ruim”, conta a hoje advogada e professora em duas faculdades de direito.