Nem tudo era luta e sofrimento nos anos 1960, período em que Dilma militou na esquerda contra a ditadura. Amigos guardam momentos da então jovem estudante secundarista, com seus 17, 18 anos, com o uniforme do Colégio Estadual Central, na época em que dava status estudar em escola pública. “A gente era tão amigo que tinha liberdade de ir um para a casa do outro ‘assaltar’ a geladeira”, recorda o compositor Márcio Borges, então estudante com 20, 21 anos, e um dos fundadores do Clube da Esquina. A casa de dona Dilma Jane, mãe de Dilminha, ficava na Rua Major Lopes, no Sion.
A turma de amigos se encontrava todos os dias depois da aula, para conversar. E toda semana tinha festinha na casa de alguém. “Eu e Dilma costumávamos ser escalados para recolher um pedaço de peru na casa de um, o resto da maionese do almoço na do outro e assim por diante”, revela o músico. Já a bebida limitava-se a vodka com refrigerante de laranja (hi-fi) e cuba libre, bem fracos. “Os drinques eram a bebida da juventude da época. Não existia cerveja em lata, só a garrafa, que vinha no casco escuro, preto ou verde”, completa. Ele morava com a família no Edifício Ingleza Levy, no Centro, antes de se mudar para o Santa Tereza, onde mais tarde iria fundar o Clube da Esquina com Bituca e os irmãos Lô e Marilton.
Com grandes olhos verdes e cabelos enrolados, Marcinho fazia o melhor que podia tentando conquistar Marisa, grande amiga de Dilma na época do colégio. Ele conheceu Dilma na pensão da Odete, na Rua Curitiba, quase esquina com a Avenida Amazonas, que servia feijoada de graça aos sábados e funcionava como aparelho da Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (Polop). “Passei a frequentar reuniões dos militantes políticos e comecei a sacar que havia algo além dos anos dourados e das festas todos os dias. Havia a turma mais politizada da Dilma e uma outra, de músicos, que me foi apresentada pelo Bituca (Milton Nascimento). Enquanto uma turma estava na clandestinidade, a outra sonhava com os holofotes. Fiquei dividido”, admite.
Segundo revelou no livro Os sonhos não envelhecem, que fará parte do museu Clube da Esquina até 2014 na Praça da Liberdade, Marcinho passou a bater altos papos com Dilma e o namorado, que mais tarde viria a ser seu primeiro marido (e hoje mora na Nicarágua, depois de fugir do país no sequestro de um avião), o jornalista Cláudio Galeno. “Galeno era muito bom nas cartas: raciocínio rápido e destreza no manuseio. Era um dos tais jovens dispostos a pagar com a vida as chamadas causas revolucionárias. (…) eu, na hora, não pensei que houvesse gente disposta a arriscar a própria pele naquilo – o que apenas demonstra o quanto podia me enganar no julgamento das motivações humanas. Além disso, amava minha família (desconfiava demais de tudo aquilo) para encarar o claustro da clandestinidade. Conservava intacta minha capacidade de indignação e mantinha afiado o senso de justiça, mas era um individualista”, reconhece o autor. “Tenho hoje o maior orgulho de ver uma pessoa da nossa turma na Presidência. Ela teve a coragem que eu não tive e pagou caro por seus ideais”, completa.
Em uma tarde de sábado, Márcio, Dilma e Bituca tinham ido visitar um colega do Imaco, no Parque Municipal. De repente, ele pediu a Bituca para mostrar a Dilma uma música nova, que os dois haviam acabado de compor naquela manhã. Ele ajeitou o violão e cantarolou com voz inconfundível: “Hoje foi que eu a perdi/Mas hoje já nem sei./Em Vera me larguei/E deito nesta dor”, revela Márcio, dando uma “palhinha”. Segundo a explicação do autor, a canção Vera Cruz representava o amor à mulher e ao mesmo tempo à pátria. A letra era escrita por meio de metáforas, para escapar da censura da época. “Lembro-me dessa cena com emoção. Nós nos abraçamos e relembramos os momentos felizes vividos juntos”, explica.
Reencontro
Quase 40 anos mais tarde, o melhor momento da juventude seria reprisado pouco antes do início da campanha de Dilma à Presidência. Havia muitos anos que eles não se viam. Dilma mandou a secretária ligar para o amigo e convidá-lo para um café na Mineiriana. “Fui sozinho. Ela chegou em um vestido azul, bonito e jovial. Foi batendo o olho no ambiente e se dirigiu à minha mesa. Havia anos que não a via. Ela disse que havia me reconhecido pelos olhos. Depois, durante a conversa, que se prolongou tarde adentro, Dilma comentou sobre o episódio da música inédita. Confessei que me lembrava da melodia, mas não do nome da canção. Ela pediu para eu cantar, uma a uma, todas as músicas da época. Reconheceu já o primeiro verso de Vera Cruz. “Passamos a tarde inteira tomando café e relembrando nossas histórias. Depois, ela foi embora no carro chapa-branca. Eu desci a Rua Paraíba a pé, chorando feito um menino e relembrando trechos de nossa linda juventude”, concluiu.
Vera Cruz
Hoje foi que a perdi, mas onde já nem sei
Em Vera me larguei e deito nesta dor
Meu corpo sem lugar
Ah, quisera esquecer a moça que se foi
De nossa Vera Cruz e o pranto que ficou
Do norte que sonhei, das coisas do lugar
Dos mimos me larguei, correndo sem parar
Buscar Vera Cruz nos campos e no mar
Mas ela se soltou, no norte se perdeu
Se ela em outra mansidão um dia ancorar
E ao vento me esquecer
Ao vento me amarrei e nele vou partir
Atrás de Vera Cruz
Ah, quisera encontrar
A moça que se foi do lar de Vera Cruz
E o pranto que ficou
Do norte que perdi das coisas do lugar
A letra de Vera Cruz, música de Márcio Borges e Milton Nascimento, que os dois mostraram a Dilma no dia em que a compuseram. Quase 40 anos mais tarde, Borges a cantarolou para a então candidata a presidente
A turma de amigos se encontrava todos os dias depois da aula, para conversar. E toda semana tinha festinha na casa de alguém. “Eu e Dilma costumávamos ser escalados para recolher um pedaço de peru na casa de um, o resto da maionese do almoço na do outro e assim por diante”, revela o músico. Já a bebida limitava-se a vodka com refrigerante de laranja (hi-fi) e cuba libre, bem fracos. “Os drinques eram a bebida da juventude da época. Não existia cerveja em lata, só a garrafa, que vinha no casco escuro, preto ou verde”, completa. Ele morava com a família no Edifício Ingleza Levy, no Centro, antes de se mudar para o Santa Tereza, onde mais tarde iria fundar o Clube da Esquina com Bituca e os irmãos Lô e Marilton.
Com grandes olhos verdes e cabelos enrolados, Marcinho fazia o melhor que podia tentando conquistar Marisa, grande amiga de Dilma na época do colégio. Ele conheceu Dilma na pensão da Odete, na Rua Curitiba, quase esquina com a Avenida Amazonas, que servia feijoada de graça aos sábados e funcionava como aparelho da Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (Polop). “Passei a frequentar reuniões dos militantes políticos e comecei a sacar que havia algo além dos anos dourados e das festas todos os dias. Havia a turma mais politizada da Dilma e uma outra, de músicos, que me foi apresentada pelo Bituca (Milton Nascimento). Enquanto uma turma estava na clandestinidade, a outra sonhava com os holofotes. Fiquei dividido”, admite.
Segundo revelou no livro Os sonhos não envelhecem, que fará parte do museu Clube da Esquina até 2014 na Praça da Liberdade, Marcinho passou a bater altos papos com Dilma e o namorado, que mais tarde viria a ser seu primeiro marido (e hoje mora na Nicarágua, depois de fugir do país no sequestro de um avião), o jornalista Cláudio Galeno. “Galeno era muito bom nas cartas: raciocínio rápido e destreza no manuseio. Era um dos tais jovens dispostos a pagar com a vida as chamadas causas revolucionárias. (…) eu, na hora, não pensei que houvesse gente disposta a arriscar a própria pele naquilo – o que apenas demonstra o quanto podia me enganar no julgamento das motivações humanas. Além disso, amava minha família (desconfiava demais de tudo aquilo) para encarar o claustro da clandestinidade. Conservava intacta minha capacidade de indignação e mantinha afiado o senso de justiça, mas era um individualista”, reconhece o autor. “Tenho hoje o maior orgulho de ver uma pessoa da nossa turma na Presidência. Ela teve a coragem que eu não tive e pagou caro por seus ideais”, completa.
Em uma tarde de sábado, Márcio, Dilma e Bituca tinham ido visitar um colega do Imaco, no Parque Municipal. De repente, ele pediu a Bituca para mostrar a Dilma uma música nova, que os dois haviam acabado de compor naquela manhã. Ele ajeitou o violão e cantarolou com voz inconfundível: “Hoje foi que eu a perdi/Mas hoje já nem sei./Em Vera me larguei/E deito nesta dor”, revela Márcio, dando uma “palhinha”. Segundo a explicação do autor, a canção Vera Cruz representava o amor à mulher e ao mesmo tempo à pátria. A letra era escrita por meio de metáforas, para escapar da censura da época. “Lembro-me dessa cena com emoção. Nós nos abraçamos e relembramos os momentos felizes vividos juntos”, explica.
Reencontro
Quase 40 anos mais tarde, o melhor momento da juventude seria reprisado pouco antes do início da campanha de Dilma à Presidência. Havia muitos anos que eles não se viam. Dilma mandou a secretária ligar para o amigo e convidá-lo para um café na Mineiriana. “Fui sozinho. Ela chegou em um vestido azul, bonito e jovial. Foi batendo o olho no ambiente e se dirigiu à minha mesa. Havia anos que não a via. Ela disse que havia me reconhecido pelos olhos. Depois, durante a conversa, que se prolongou tarde adentro, Dilma comentou sobre o episódio da música inédita. Confessei que me lembrava da melodia, mas não do nome da canção. Ela pediu para eu cantar, uma a uma, todas as músicas da época. Reconheceu já o primeiro verso de Vera Cruz. “Passamos a tarde inteira tomando café e relembrando nossas histórias. Depois, ela foi embora no carro chapa-branca. Eu desci a Rua Paraíba a pé, chorando feito um menino e relembrando trechos de nossa linda juventude”, concluiu.
Vera Cruz
Hoje foi que a perdi, mas onde já nem sei
Em Vera me larguei e deito nesta dor
Meu corpo sem lugar
Ah, quisera esquecer a moça que se foi
De nossa Vera Cruz e o pranto que ficou
Do norte que sonhei, das coisas do lugar
Dos mimos me larguei, correndo sem parar
Buscar Vera Cruz nos campos e no mar
Mas ela se soltou, no norte se perdeu
Se ela em outra mansidão um dia ancorar
E ao vento me esquecer
Ao vento me amarrei e nele vou partir
Atrás de Vera Cruz
Ah, quisera encontrar
A moça que se foi do lar de Vera Cruz
E o pranto que ficou
Do norte que perdi das coisas do lugar
A letra de Vera Cruz, música de Márcio Borges e Milton Nascimento, que os dois mostraram a Dilma no dia em que a compuseram. Quase 40 anos mais tarde, Borges a cantarolou para a então candidata a presidente