Jornal Estado de Minas

Julgamento do mensalão mostrará uma Justiça desatrelada do poder, diz ministra do STJ

Coisas ruins têm de vir a público, diz Eliana Calmon em entrevista ao EM

Daniel Mascarenhas Diego Abreu

No último dia de expediente na função de corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Eliana Calmon teve tempo para reafirmar cada uma das suas convicções a respeito da magistratura brasileira. Reiterou a necessidade de desmitificar a imagem de “semideuses” dos juízes da mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal, falou sobre o uso da polêmica expressão “bandidos de toga” para referir-se aos magistrados que cometiam irregularidades, e disse que a missão dos integrantes do STF no julgamento do mensalão é mostrar como se faz Justiça, assim, com letra maiúscula. Em entrevista exclusiva, ela não poupou críticas sequer ao CNJ: “O colegiado é tímido, não está aberto às mudanças”. Aproveitou para descartar o desejo de advogar quando se aposentar no STJ, em 2014, por faltar-lhe disposição e clientela, bem como o ingresso na política, por rejeitar o modelo de financiamento de campanha: “Quem doou quer o quê? Minha alma? Essa eu não dou”.

A senhora se arrepende de algo da sua gestão? Valeu a pena ter dito que há bandidos de toga?
Não me arrependo de nada. Valeu, sim. Hoje, grande parte da magistratura tem a exata medida de compreensão das minhas palavras.

E o CNJ ainda tem muito a evoluir para combater irregularidades no Judiciário?
O colegiado é tímido, não está aberto às mudanças. O corporativismo é muito forte, penetrante. Vai e volta. É derrotado, mas consegue vitórias. Temos de estar muito atentos evitar que CNJ seja um arremedo do que é a Justiça piorada.

Se há tantos bandidos de toga, por que surgem mais escândalos no Legislativo e no Executivo do que no Judiciário?
Esses dois poderes têm mais visibilidade. E no Judiciário há um pouco menos de corrupção, pois trabalha com pouco dinheiro, e as pessoas são selecionadas em concursos. Corrupção no Judiciário é provocada por falta de gestão e fiscalização, porque essas corregedorias locais não fiscalizam coisa alguma. Então, magistrado com 25 anos é lançado numa comarca e ganha uma autoridade sem saber ser autoridade. E muitas vezes é cooptado por amigos infiéis, entre aspas.

Ficou alguma rusga com o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso?
Não. Sempre o tratei como ministro do Supremo Tribunal Federal e, da mesma forma, ele sempre me recebeu muito bem. A cabeça dele é diferente da minha. Como é um juiz voltado para o passado, na cabeça dele, sou abominável. Ele quer uma magistratura austera, calada, discreta. Eu quero que seja indiscreta em relação aos seus feitos. As coisas ruins da instituição têm de vir a público, porque é ao público que devemos satisfação.

De que forma vai continuar colaborando com a evolução do Judiciário?
Ontem (terça-feira), fui eleita diretora da Escola Nacional de Formação de Magistrados. Precisamos formar magistrados que tenham responsabilidade por coisas que a magistratura não pensa, como a gestão. Não me interessa um juiz que fala três idiomas e faz uma sentença em 30 páginas. O que me interessa é que ele saiba gerir, se comportar como agente público e que ele aprenda a Constituição de 1988.

Quais os planos da senhora, depois de se aposentar no Superior Tribunal de Justiça, daqui a dois anos?
Não serei política. Não me acho apta para passar por um processo eleitoral, inclusive, colocando em risco meu patrimônio. Gasta-se muito em eleição.

Não aceitaria doações?
A questão é a seguinte: quem ia ser meu dono. Doa, eu aceito, e não ponho em risco meu patrimônio. Mas quem doou quer o quê? A alma de Eliana Calmon? Essa eu não dou. Também descarto ser advogada. Não tenho mais idade para ser advogada de balcão, acompanhar o funcionamento do fórum, pedir para juiz marcar audiências. Também não faria advocacia de lobby, porque acho que ninguém ia me contratar, ia? Você me contrataria? (risos)

Como a senhora enxerga o impacto do julgamento do mensalão para a imagem do Judiciário?
Chegou a vez da abertura do Poder Judiciário. A TV Justiça é um negócio fantástico. A gente está vendo as entranhas. Por exemplo, vemos que ministros do STF, que estavam no Olimpo, quase semideuses, são de carne e osso: brigam, fazem baixarias, têm iras, ódios, afetos, choram, sentem dor na coluna, acusam golpes... Desmitificou. Isso é fantástico!

O STF de hoje é diferente de tempos atrás?
Completamente. STF sempre foi um tribunal alinhado com o poder. O que desatrelou o Judiciário do poder foi a Constituição de 1988. No passado, era um modelo criado para um país atrasado, de elites, patrimonialista, em que o Judiciário era chancelador das safadezas todas.

Qual a missão do STF no julgamento do mensalão?
Dizer para que serve a Justiça

A segurança dos juízes ainda é um grande problema. Como reverter esse quadro?
O mais importante para a segurança do juiz é o serviço de inteligência. Todos os atentados contra magistrados foram detectados pelo serviço de inteligência. No caso da Patrícia Acioli (assassinada em Niterói por policiais em agosto do ano passado), a inteligência da Polícia Federal acusou, mas não acreditaram.

O que é mais viável extirpar: os bandidos de toga ou as execuções de magistrados?
A gente vai acabar com as execuções. Bandido de toga, vai demorar. O filão é bom, tem muita gente enriquecendo.

 

"Estamos vendo que juiz do Supremo é de carne e osso: briga, faz baixaria, tem iras, ódios, amizades, afetos, sensibilidade, chora, tem dor na coluna, acusa golpe. Isso é fantástico!"