Jornal Estado de Minas

Acervo da ONU reforça elo de países na Operação Condor

Agência Estado
Acervo com relatórios confidenciais, telegramas, cartas a ministros e informes de reuniões que o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) reuniu sobre ditaduras na América do Sul confirmam que, pelo menos até 1979, cidadãos argentinos, uruguaios, paraguaios e chilenos que buscaram refúgio em território brasileiro foram vigiados, ameaçados, detidos e devolvidos aos seus países - com ajuda e conhecimento das Forças Armadas do Brasil. É a primeira vez que a ONU divulga o conteúdo desse acervo.
Os documentos mostram que só o serviço secreto uruguaio teria conseguido, com a ajuda de Brasília e Buenos Aires, sequestrar e levar de volta para as prisões de Montevidéu 110 refugiados políticos que estavam no Brasil e na Argentina entre 1976 e 1979. “Assumimos que ainda exista, como no passado, uma cooperação técnica entre as forças de segurança de Uruguai, Argentina e Brasil”, afirmava um telegrama secreto da ONU de 25 de junho de 1979, guardado nos arquivos de Genebra.

As convenções da ONU consideram a devolução de pessoas ao seu país de origem um crime contra a humanidade - já que representa, em muitos casos, uma sentença de morte. Para representantes do Acnur hoje, a comprovação das informações poderia exigir que pessoas envolvidas sejam processadas pelo crime.

Levantadas pelos enviados da ONU à região, as informações apontam uma cooperação bastante organizada entre os regimes militares do Brasil, Argentina e Uruguai - tanto nas relações políticas quanto no modo operacional - e que se estendeu por toda uma década. Na época, a ONU montou uma operação para retirar do Cone Sul mais de 18 mil pessoas ameaçadas por suas atividades políticas.

Até o fim dos anos 1960, a ONU admitia em documentos internos que trabalhava com a perspectiva de que um refugiado de um país latino-americano que cruzasse a fronteira não seria devolvido e que teria proteção garantida. Essa percepção começou a mudar em 1969, quando um telegrama de 12 de setembro, do escritório da ONU em Buenos Aires para Genebra, alertava que “fontes da Igreja” apresentaram informações segundo as quais brasileiros que haviam fugido começaram a ser perseguidos na Argentina e no Uruguai. O escritório sugeria que a ONU enviasse à região uma missão para dialogar com os governos e entender o que estava ocorrendo.

“O problema de asilo para latino-americanos fugindo de seus países por questões políticas está se tornando mais difícil de lidar que no passado, diante da vontade cada vez menor de certos governos latino-americanos de dar asilo”, dizia o telegrama.

Sequestradores


Meses depois, a cooperação já era realidade. Em telegrama de 14 de abril de 1970, o representante do Acnur em Bogotá alertava para uma coordenação entre as diplomacias da região contra os militantes de oposição, principalmente diante dos sequestros políticos que aumentavam. “Recentes sequestros políticos no Brasil, na Argentina e na Guatemala e o trágico assassinato do embaixador Von Spreta vão provavelmente resultar em políticas muito mais restritivas de asilo para aqueles que eventualmente possam ser responsáveis por tais crimes”, dizia. Naquele ano, grupos sequestraram embaixadores trocando-os por presos políticos.

Segundo o telegrama, um plano estava sendo costurado entre diplomatas para fechar o cerco contra sequestradores e impedir que pudessem fazer a troca de embaixadores por militantes presos. Uma das propostas era um acordo para considerar “pessoas nas listas para trocas em um caso de sequestro como possíveis cúmplices no sequestro” - ou seja, seriam também consideradas criminosas e não poderiam ser trocadas.

“Todos os países assumirão a obrigação de não dar asilo a qualquer pessoa na lista de candidatos para serem trocados com sequestradores e dar extradição imediata se um deles entrar em seus territórios”, dizia o texto. O Acnur previa naquele momento que México e Cuba rejeitariam fazer parte do acordo.

Em um telegrama de 14 de fevereiro de 1978, a ONU alertava para a situação de um militante argentino exilado no Brasil - identificado apenas como Bevacqua -, detido na rua, em Porto Alegre, em uma verificação de papéis. Horas depois da prisão, ele morreria. Informações obtidas pela ONU com diplomatas americanos indicavam que a polícia queria evitar a suspeita de assassinato. Duas autópsias teriam sido feitas, mostrando que ele sofreu um “ataque cardíaco”.

O Acnur não confiava na informação. “Outras fontes confiáveis expressaram dúvidas sobre essa versão (do ataque cardíaco), sugerindo que ele, um militante, possa ter se envenenado para evitar revelar fatos sob tortura”, apontava o telegrama.

O Acnur dizia que a ação ocorre no momento em que havia sinais de que o principal grupo de oposição argentino, os Montoneros, tentava se reorganizar, usando o território brasileiro. Mas, diante desse incidente, a ONU também via outro fenômeno: “A inteligência militar argentina está ativa no Brasil”.

“Um nome que está sendo mencionado em particular é o de um oficial da Marinha, conhecido como El Gato e que esteve em novembro no Uruguai, e que foi visto no Brasil recentemente”, informava a entidade.

Outra seria Silvina Labayru, ex-militante dos Montoneros, responsável pelo serviço de inteligência no grupo e que acabou passando para o lado da Junta Militar. “Ela agora responde à Marinha argentina. Ela foi vista no Brasil.”

Em 1.º de dezembro de 1978, um telegrama urgente do escritório da ONU no Rio para Genebra alertava sobre o sequestro, em Porto Alegre, dos uruguaios Universindo Diaz e Lilian Celiberti e de dois filhos desta. Um relatório confidencial mostraria que os menores acabaram sendo levados de carro para o Uruguai, enquanto Lilian e Universindo seguiram para São Paulo - onde foram colocados em um avião que voou para Montevidéu.

Dias depois, o exército uruguaio publicaria um comunicado de imprensa dizendo que o casal fora preso depois de “cruzar ilegalmente a fronteira, com falsos documentos e levando literatura subversiva”. Um terceiro comunicado sustentava que eles estavam traficando armas.

Emergência

Alarmada pela situação, a ONU pediu uma reunião de emergência com o Itamaraty. Recebidos pelo embaixador Luis Lindberg Sette, diretor do Departamento de Organizações Internacionais, os representantes da ONU apenas escutaram da diplomacia que o Brasil “lamentava” o incidente.

Meses depois, em outro telegrama, a ONU confirmava que os homens que invadiram o apartamento dos opositores uruguaios levaram 45 armas “reservada às forças brasileiras” e que o Dops teria participado do sequestro e envio dos quatro uruguaios para Montevidéu. Os regimes transformariam o apartamento em uma arapuca.

“Operações clandestinas da inteligência uruguaia parecem continuar no Sul do Brasil para analisar e neutralizar o movimento de muitos uruguaios vivendo no exílio”, indicava documento de junho de 1979.