Antes mesmo de completar uma década em vigor, o Estatuto do Desarmamento – que regulamenta registro, posse, porte e comercialização de armas de fogo e munição no país – está ameaçado por projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional liberando o uso de armamento para os cidadãos comuns. O Projeto de Lei 3.722, do deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), vem ao encontro do desejo dos brasileiros, manifestado no referendo de 2005, quando mais de 63,4% da população se declarou contrária à proibição da venda de armas.
A tentativa de liberação do comércio de armamento no Brasil, no entanto, está na contramão do que vem ocorrendo nos Estados Unidos, que, pela primeira vez, admitem discutir uma política de desarmamento, mesmo tendo o título de país com maior número de armas em poder de civis: 270 milhões. O debate foi desencadeado pela tragédia na escola primária da cidade de Newtown, em Connecticut, quando 26 pessoas foram assassinadas a tiros por um jovem de 24 anos.
Para o presidente do Movimento Viva Brasil (MVB), professor Bené Barbosa, bacharel em direito, a revogação do estatuto se tornou necessária diante da ineficácia que a regulamentação do porte de armas demonstrou no combate à violência. Barbosa, que auxiliou o peemedebista Peninha na elaboração do projeto de lei, diz que, mesmo com a proibição do uso de arma por civis, o número de homicídios cresceu em 20 estados brasileiros. ele argumenta ainda que a legislação está descolada da realidade. Prova disso foram as mais de 30 emendas que ela recebeu desde que entrou em vigor.
O procurador André Estêvão Ubaldino Pereira, coordenador das Promotorias de Combate ao Crime Organizado em Minas, engrossa o coro dos descontentes com a legislação. Para ele, o Estado demonstra incapacidade de oferecer segurança ao cidadão e ainda usurpa dele o direito de se defender. “Para o bandido, restou a sensação de impunidade, porque sabe que não sofrerá represália de sua vítima”, diz.
Para Barbosa, as tragédias semelhantes à de Connecticut não têm qualquer vinculação com a possibilidade de liberação do uso de arma de fogo pelo cidadão. “Veja, aqui no Brasil os civis não podem usar armas e tivemos também a tragédia em Realengo”, justifica, se referindo ao episódio ocorrido na Zona Oeste do Rio, em abril de 2011, quando 12 alunos da Escola Municipal Tasso da Silveira foram assassinados e 12 ficaram feridos. A tragédia foi provocada por um ex-aluno, de apenas 23 anos, que entrou no prédio da escola atirando. Para reforçar sua tese, o professor se apoia em números. “Nos EUA existem cerca de 300 milhões de armas em mãos civis, enquanto temos 1,5 milhão delas registradas no Sistema Nacional de Armas (Sinarme) com os cidadãos, e apesar disso, temos cinco vezes mais homicídios por ano do que os americanos. Já chegamos à casa de 50 mil mortes em 12 meses.”
DEFENSORES DE PESO Apesar de rejeitado pelos brasileiros, o Estatuto do Desarmamento tem defensores de peso, como a presidente Dilma Rousseff, o presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS), e ainda estudiosos como o pesquisador e coordenador de comunicação do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais, Robson Sávio Reis Souza. Na semana passada, Dilma vetou projeto de lei que ampliava as categorias com direito ao uso de armas. Dessa vez, os beneficiados seriam agentes e guardas prisionais, integrantes das escoltas de presos e guardas portuários, mesmo fora de serviço. A justificativa de Dilma é de que a ampliação “implica maior quantidade de armas de fogo em circulação, na contramão da política nacional de combate à violência”. Em defesa do estatuto, Maia afirma, em apresentação de sua quarta edição na biblioteca da Câmara, que a legislação é um importante instrumento de cidadania.
Maia admite que o estatuto passou por alteração para ser aprimorado, mas não estendeu “privilégios relativos à aquisição e porte de arma a categorias que não necessitam dela como instrumento de trabalho ou para segurança própria, em situações específicas”. “Apesar da queda do número de homicídios, principalmente entre 2003 e 2006, continua a aumentar o percentual de casos em que armas de fogo são usadas. Isso demonstra que o Parlamento não deve permitir mudanças na lei que diminuam o controle obtido pelas restrições do Estatuto do Desarmamento, em conjunto com as periódicas campanhas de recolhimento de armas de fogo”, defende.
A intensificação das campanhas para desarmar os civis é uma medida importante também para o professor Robson Sávio. Ele lembra que as campanhas foram uma estratégia fundamental para a Colômbia no combate ao crime organizado, ao lado da reforma das polícias.
Para Robson Sávio, é uma falácia dizer que o estatuto é ineficaz no combate à violência e apresentar números que impressionam. “Estima-se que hoje temos entre 18 e 20 milhões de armas em mãos de civis , sendo que dos 50 mil assassinatos, 90% são provocados por arma de fogo. E pior. Do total de mortes, 45% delas são desencadeadas por motivos fúteis, como briga entre casais e de trânsito.” O pesquisador explica que para tornar o desarmamento mais eficaz é necessário que seja feito um combate mais efetivo do comércio clandestino de armas que ocorre em nossa fronteiras. “Em 2004, a estimativa era de que tínhamos apenas 12 milhões de armas, e agora essa estimativa é de 20 milhões”, diz.
Saiba mais
Referendo
Os brasileiros foram convocados às urnas em 2005 para responder a seguinte pergunta: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Caso a proibição fosse aprovada por maioria simples do eleitorado, a venda de armas e munições se restringiria à Presidência da República, Forças Armadas, polícias estaduais e Federal, guardas municipais, penitenciárias, guardas portuários, empresas particulares de segurança e transporte de valores e entidades desportivas de tiro legalmente constituídas. A vitória do "não" manteve as regras determinadas pelo Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em dezembro de 2003 e tornou mais rígidas as normas para a concessão do registro e do porte de arma de fogo no país. Ao entrar em vigor, o estatuto anulou todos os portes (autorização para circular com a arma) para o cidadão comum.