Jornal Estado de Minas

Ministério Público e polícias em campos opostos

MP e polícias travam queda de braço sobre o limite de atuação das promotorias, mas reconhecem necessidade de ação conjunta

Maria Clara Prates
Polícia Civil, Receita e Ministério Público em operação em Contagem: três forças contra crimes fiscais - Foto: Pedro Rocha Franco/EM
No calor do debate em torno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37 que coloca em campos opostos o Ministério Público e as polícias Civil e Federal, que deveriam ser complementares, todos concordam com um ponto essencial: a ação do Ministério Público é não só bem-vinda, mas também indispensável para o combate ao crime. Os dois lados afastam a possibilidade de a queda de braço estar sendo conduzida por razões corporativas, defendem a colaboração entre o MP e as polícias, mas estão longe de um consenso sobre se deve haver e quais devem ser os limites de atuação do órgão na investigação criminal – vetada pela PEC.


O procurador de Justiça André Estevão Ubaldino Pereira, coordenador das Promotorias de Combate ao Crime Organizado, invoca o artigo 5º da Constituição, que trata dos direitos fundamentais do cidadão, para defender a atuação do Ministério Público em investigações criminais. Referindo-se ao direito do cidadão de receber proteção concreta do Estado, o procurador argumenta que retirar o poder de investigação de um órgão corresponde a cassar parte da cidadania, numa realidade como a brasileira, em que as polícias judiciárias apresentam uma crônica falta de estrutura. “Em um cenário ideal, a polícia faria tudo sozinha. E deve fazer tudo, recebendo apenas a contribuição do Ministério Público. Mas, até que haja o fortalecimento da instituição policial, o cidadão não pode suportar o ônus da polícia desaparelhada. Assim a investigação pelo MP é uma alternativa”, defende Ubaldino Pereira, autor de uma tese sobre o tema.

O argumento do procurador encontra respaldo na opinião do promotor de Justiça de Brasília Antônio Suxburger, que vê com desconfiança até mesmo a proposição de uma PEC pela Câmara para tratar do tema num momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para se pronunciar sobre a atuação do Ministério Público. “A proposta é, no mínimo, inoportuna e afronta o STF, a instância suprema para interpretação da Constituição. Além disso, cassar o direito de investigação do MP é ir na contramão da efetividade e aprimoramento do combate ao crime”, diz. Suxburger lembra que em apenas três países do mundo – Uganda, Indonésia e Quênia – o MP não pode apurar crimes.

Adotando um tom conciliador, mas na defesa da investigação criminal como tarefa exclusiva das polícias, o presidente da Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio, afirma que a edição da PEC 37 é importante para impor regras para as apurações no país. “Nós não questionamos o poder de investigação do Ministério Público, o que buscamos é uma investigação colaborativa, com os representantes do MP atuando diretamente com a polícia. O que não pode haver são apurações autônomas e paralelas pela instituição, como ocorre hoje. O MP exerce esse poder sem respaldo legal”, afirma.

De acordo com Leôncio, atualmente o Ministério Público investiga como as polícias judiciárias, mas sem qualquer controle. “Qual o procedimento a ser adotado, qual a forma, como deve ser feito? Atualmente não há respostas para essas perguntas”, diz ele, que engrossa a lista daqueles que invocam os direitos constitucionais do cidadão nos dois polos do debate: “A investigação sem controle é uma violação”, afirma.

Com esse argumento, a Polícia Federal ganha um aliado de peso na defesa da PEC: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O professor de direito e desembargador aposentado Edson Smaniotto, que participou da audiência pública sobre a proposta de emenda à Constituição como representante da entidade, diz que é inaceitável que a autoridade que tem a função de acusar seja a mesma a colher a prova do crime. Para ele, quando promove uma investigação, o Ministério Público não tem como preocupação de base o que de fato aconteceu, mas trabalha com “uma lógica construída”, para provar o que lhe interessa. “Nas investigações do MP não existem garantias para o investigado. O andamento das apurações é sigiloso, não há transparência”, afirma. “O inquérito de tese merece repúdio porque fere a cidadania”, defende o professor.

O MP garante que existem, sim, regras para as investigações criminais feitas pelo órgão, estabelecidas pela Resolução 13 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que define os prazos e a conduta correta no processo de apuração. A existência dessas normas, entretanto, não convence o outro lado. “O CNMP não tem competência para elaborar norma, só o Congresso pode legislar. Os critérios apresentados pela resolução são da instituição e não do cidadão”, rebate Smaniotto.

 

Cabo de guerra

Os argumentos de cada um dos grupos sobre a PEC 37

 

Contrários

» O grupo, que chama a proposta de PEC da Impunidade, afirma que ela impedirá, somente no âmbito do Ministério Público Federal, que mais de 1 mil procuradores da República trabalhem no combate ao desvio de dinheiro público e à corrupção.

» A proposta reduz o número de órgãos empenhados na fiscalização.

» A PEC gera insegurança jurídica e desorganiza o sistema de investigação criminal, já que permitirá que os réus em inúmeros procedimentos criminais suscitem novos questionamentos processuais sobre supostas nulidades.

» A proposta vai na contramão de tratados internacionais assinados pelo Brasil, entre eles a Convenção de Palermo (que trata do combate ao crime organizado), a Convenção de Mérida (corrupção) e a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Todas determinam a ampla participação do Ministério Público nas investigações.

 

Favoráveis

» Esse grupo denomina a proposta de PEC da Legalidade sob o argumento de que o Ministério Público exerce hoje poder de investigação sem respaldo legal.

» No Ministério Público, aquele que tem a função de acusar é a mesma autoridade responsável pela coleta de prova, o que significa a imposição de uma “lógica construída”.

» Não existem garantias ao investigado, já que o procedimento no MP tem andamento sigiloso e não existe previsão legal
para acesso às partes.

» O inquérito policial obedece a regras, exige transparência e tem prazos estabelecidos. Se houver negligência das polícias, o Ministério Público pode intervir e solicitar diligências para conclusão do inquérito. No caso das investigações do MP, as regras foram criadas pela própria instituição.