Jornal Estado de Minas

Deputados se aproveitam de fiscalização frágil e insuficiente de gastos

Especialistas alertam para a falta de controle na análise das notas apresentadas pelos deputados para justificar os gastos

Juliana Colares

  Plenário da Câmara dos Deputados: volume de recursos de cota parlamentar passa a ser de R$ 205,6 milhões, R$ 22 milhões a mais que em 2012 - Foto: Iano Andrade/CB.D.A.PressBrasília – O valor da cota parlamentar paga a cada um dos 513 deputados federais vai aumentar, mas os mecanismos de controle e fiscalização da Câmara continuam frágeis e insuficientes para coibir desvios e desperdícios. Em 2012, a Casa colocou mais de R$ 183 milhões à disposição dos deputados, dos quais R$ 178 milhões efetivamente pagos, mediante apresentação de notas fiscais. Ao longo do ano, 205 mil comprovantes foram apresentados e analisados por uma diminuta equipe de 21 funcionários. Significa dizer que, em 2012, cada um deles precisou dar conta de 45 notas, em média, por dia – isso sem considerar folgas e faltas por doença ou qualquer outro motivo. A própria Câmara admite: a equipe apenas checa se o tipo de serviço descrito na nota se encaixa nas normas de uso da cota e se o nome da empresa bate com o CNPJ impresso no comprovante. A partir de 1º de abril, quando o reajuste deve começar a valer, essa mesma equipe terá que analisar a prestação de contas de um volume de recursos que pode chegar a R$ 205,6 milhões – R$ 22 milhões a mais do que no ano passado.

 Para o diretor de Defesa Profissional do Sindicato Nacional dos Analistas Tributários da Receita Federal do Brasil (Sindireceita), Odair Ambrósio, o tamanho da equipe de fiscalização da cota parlamentar da Câmara é suficiente apenas para uma análise superficial. “Para verificar se o CNPJ corresponde à empresa, é só acessar o site da Receita. Muitas vezes, no entanto, o CNPJ existe, mas a empresa, não. Para ligar para a empresa ou ir ao local e verificar se ela é fantasma ou não, uma equipe desse tamanho não é suficiente. Cada um não conseguiria analisar mais de 10 notas fiscais por dia, num ritmo de trabalho forte”, afirmou. Se cada funcionário verificasse 10 notas por dia, a Câmara precisaria de mais de 80 pessoas para dar conta de um volume de notas similar ao apresentado no ano passado, antes do reajuste.

 

A Casa, no entanto, se exime do trabalho e diz que cabe exclusivamente ao deputado a responsabilidade pela compatibilidade entre o objeto do gasto e a legislação. Segundo a assessoria de imprensa da Câmara, “não existe análise de mérito nem fiscalização in loco”. “No Brasil, em qualquer esquina é possível comprar notas fiscais. É preciso haver controle interno eficiente, além de controle externo e social. Mas o controle interno é precário, o externo é praticamente inexistente e o da sociedade também, uma vez que as notas fiscais não estão disponíveis na internet”, disse o fundador do Contas Abertas, Gil Castello Branco.

 Em levantamento feito em parte das notas fiscais apresentadas pelos parlamentares no ano passado, a reportagem encontrou até comprovantes com numeração sequenciada e valores repetidos, relativos a gastos com alimentação do mesmo parlamentar, em dias diferentes. Mesmo diante do indício de irregularidade, a Câmara respondeu que “a numeração sequencial de nota fiscal por si só não configura ilegalidade”. “Não existe controle sobre o uso desses recursos. Boa parte é usada como complementação salarial ou divulgação do mandato, que acaba servindo como propaganda do candidato. Conseguir nota fiscal não é problema para os deputados. Eles não precisam provar que a publicação foi feita ou o serviço, prestado. O sistema é viciado”, opinou o cientista político da Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Barreto.

 As notas fiscais têm natureza pública, mas o acesso a elas não é fácil e, não raro, com divulgação apenas parcial, o que dificulta o controle social. A Câmara justifica que o volume de documentos é muito grande. Em fevereiro, a reportagem solicitou acesso às notas fiscais de janeiro. O pedido não foi atendido. Por e-mail, a Câmara respondeu que “o novo sistema informatizado de gestão da Cota para Exercício da Atividade Parlamentar está em fase de homologação e, em breve, estará em funcionamento”. Informou, ainda, que a alteração tem como objetivo principal possibilitar a inclusão dos documentos de 2013 diretamente no portal. Na última sexta-feira, a assessoria de imprensa da Casa disse, no entanto, que não há nenhuma previsão para divulgação dessas notas na internet.

 ERROS Primeiro-secretário da Câmara, Márcio Bittar (PSDB-AC) afirma que é impossível verificar a veracidade de todas as informações declaradas pelos parlamentares e pagas com dinheiro do contribuinte. “Vamos imaginar que os 513 deputados aluguem carros. A Câmara não tem como fiscalizar isso”, disse. “Todo mundo é inocente até que se prove o contrário”, afirmou.

 Em 2011 e 2012, a Câmara devolveu 3.155 notas fiscais aos deputados por “não preencherem os requisitos para liquidação da despesa pública”. Entre as razões para a rejeição estão rasuras, documentos em nome de terceiros, informações incompletas sobre a empresa que prestou o serviço e erros de preenchimento. Segundo a Câmara, todos os gastos da Câmara são alvo de auditoria por parte da Secretaria de Controle Interno da Casa e do Tribunal de Contas da União (TCU). As prestações de contas da Câmara referentes aos anos de 2010 e 2011 ainda estão em tramitação no TCU e não há deliberações a respeito.

 ‘COTÃO’ A cota parlamentar foi criada em 2009, quando, após críticas e denúncias de mau uso, a polêmica verba indenizatória deixou de existir oficialmente, sendo, na prática, agregada aos gastos postais, telefônicos e de passagens aéreas, sob o apelido de “cotão”. Desde então, nunca foi reajustada. Segundo o diretor-geral da Câmara, Sérgio Sampaio, os valores estão defasados em aproximadamente 23% pelos índices inflacionários oficiais. Dois dos parlamentares que menos usam os recursos da cota, Reguffe (PDT-DF) e Miro Teixeira (PDT-RJ), são favoráveis à extinção da parcela correspondente à verba indenizatória. “Me surpreendi quando soube do reajuste. É preciso reduzir esses artifícios, que acabam significando outra fonte de remuneração ao parlamentar”, disse o deputado fluminense. “Esse gasto excessivo é um desperdício de dinheiro público e um desrespeito ao contribuinte”, afirmou Reguffe.

 PROPOSTA Ex-deputado federal pelo PSDB de Minas Gerais, Rafael Guerra disse que em 2009, quando era primeiro secretário da Câmara, chegou a elaborar uma proposta que aproximaria a fiscalização feita na Câmara da existente no parlamento americano. A ideia era de que cada gabinete funcionasse como uma unidade orçamentária e precisasse prestar contas trimestralmente, sob risco de não receber os recursos dos três meses seguintes, caso não apresentasse a documentação ou tivesse as contas contestadas. “O parlamentar teria que ter contador e livro caixa para prestar contas com detalhes, como se fosse uma empresa. Mas, naquela época, uma proposta como essa não teria respaldo”, afirmou. A ideia nunca foi transformada em projeto de resolução e, portanto, nem sequer chegou a tramitar na Casa.