A recém-descoberta documentação do Relatório Figueiredo – que apurou violações de direitos humanos de indígenas na década de 1960 e em décadas anteriores – pode ser um trunfo para os índios cadiuéus de Mato Grosso do Sul. Segundo um dos líderes desse povo, Francisco Matchua, de 51 anos, o texto pode ser usado como prova de que 140 mil hectares pertencentes a eles foram invadidos por fazendeiros. “Um processo tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF) durante 30 anos pedindo as terras de volta. No ano passado ele voltou para Campo Grande (MS) e nada foi resolvido. Com certeza, esses documentos vão nos ajudar”, afirma.
O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de Mato Grosso do Sul, Flávio Machado, concorda: “O Relatório Figueiredo vai ajudar a mudar a forma como o governo trata as populações indígenas no Brasil e ainda vai trazer várias bombas sobre a história recente do país”. De acordo com ele, uma sentença do ministro Celso de Mello enviou a ação que pedia as terras desses índios de volta ao estado de origem. A reserva da etnia Kadiwéu em Mato Grosso do Sul foi estabelecida por dom Pedro II como recompensa pela participação deles na Guerra do Paraguai (1864–1870) e continha 528 mil hectares.
O Estado de Minas narra, desde sexta-feira, os segredos contidos no famoso relatório produzido pelo procurador Jader de Figueiredo a mando do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, entre novembro de 1967 e março de 1968. Tido como desaparecido em um incêndio no Ministério da Agricultura, ele foi encontrado no ano passado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Nas mais de 7 mil páginas de investigação sobre atrocidades cometidas por fazendeiros e agentes do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), constam depoimentos, fotos e registros da expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros pelo interior do país.
Ação de Estado
Para o deputado Domingos Dutra (PT-MA), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e defensor de grupos indígenas, a descoberta do Relatório Figueiredo será fundamental para que venham à tona novos detalhes sobre atuações de órgãos do estado e grupos privados contra populações indígenas. “No Brasil, sempre existiu uma ação de Estado, nos três poderes, para manter a dizimação da cultura indígena. Tivemos no ano passado um decreto da presidente Dilma Rousseff autorizando intervenções das Forças Armadas em território indígena. Também são recorrentes decisões absurdas do Poder Judiciário determinando reintegração de posse para fazendeiros, e no Congresso, são poucas as medidas a favor dos índios”, afirma o petista.
O parlamentar, que desconhecia o documento até a publicação da reportagem, prepara um requerimento para ter acesso ao material e para que a Comissão da Verdade dê prioridade às investigações sobre as atrocidades trazidas no relatório. A coordenadora do núcleo de luta pela terra da comissão, Maria Rita Kehl, disse ao Estado de Minas que a prioridade é investigar casos exemplares. “É um horror o que vimos nesse relatório”, ressalta Dutra. Segundo o parlamentar, a disputa mais urgente que está sendo travada na Câmara diz respeito à demarcação de territórios, principalmente na fronteira agrícola, na região Centro-Oeste do país. “Vamos lutar para que propostas que reduzem o direito dos índios, como por exemplo a PEC215 (que trata da demarcação), não sejam aprovadas, mas será preciso o apoio das lideranças partidárias’, diz.
Sub-representados O ex-ministro dos Direitos Humanos, deputado Nilmário Miranda (PT), se disse impressionado pelos relatos trazidos no Relatório Figueiredo. O parlamentar alerta para uma pressão existente para o retrocesso na causa indígena, principalmente no entorno de cidades onde a terra estaria hipervalorizada. Segundo ele, desde a Constituição de 1988, foram incluído vários direitos indígenas na legislação, mas sem que fossem capazes de impedir a tendência de imposição da cultura dominante. “São cerca de 40 mil indígenas acampados, esperando soluções da Justiça para saber se têm ou não direitos a terra. Nesses lugares, muitas assembleias estaduais concederam títulos de propriedade sobre terras da União, sem ter direito de fazê-lo. Criou-se então um problema complexo, já que envolve também milhares de pequenos agricultores que dependem de suas produções para sobreviver”, explica Nilmário.
A pouca, ou “praticamente inexistente”, representatividade dos grupos indígenas no Parlamento, no entanto, é apontada como fator que dificulta a derrubada de projetos contrários aos interesses dos povos nativos. Ele sustenta que os desejos de grandes empresários e produtores rurais encontram um apoio muito forte no Congresso, o que gera conflito direto com a causa indígena. “Temos no Brasil mais de um milhão de índios. São centenas de povos sem representação nenhuma. Então, a disputa é duríssima, já que os defensores da ideia do produtivismo sem limites têm uma força maior e não existe o respeito ao direito à terra e à cultura”, analisou Nilmário.